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São Paulo, sexta-feira, 28 de março de 2003

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DIÁRIO DE BAGDÁ

Em Bagdá, somos todos parte do mesmo alvo

Juca Varella/Folha Imagem
Edifício onde estavam rádios e TVs iraquianas em Bagdá, parcialmente destruído por mísseis dos EUA



Pânico. Gritos. Em 30 segundos, repórteres do mundo todo corriam pela rua em busca de um abrigo

Após o ataque, começou a disparada para saber qual equipe chegaria primeiro ao local atingido



JUCA VARELLA
FOTÓGRAFO
SÉRGIO DÁVILA
REPÓRTER

A entrevista coletiva estava marcada para as 15h locais (9h de Brasília), e os jornalistas começavam a chegar ao prédio novo do Ministério da Informação, no centro de Bagdá. De novo, repararam que os funcionários colocaram cadeiras novas de plástico.
O tema seriam os escudos humanos, que continuam na cidade e inclusive fizeram uma publicação, que começava a ser distribuída aos presentes. De repente, ouve-se a sequência de sons e ruídos que tomam a cidade há oito dias, mas com a qual ninguém jamais vai se acostumar.
Bum. Primeiro, o barulho da bomba batendo no solo. Depois, o tremor de terra causado pelo impacto. Por fim, a explosão propriamente dita. Bum. De novo, a mesma sequência. O alvo parecia ser perigosamente próximo de onde estávamos. Apreensão.
Foi quando o prédio todo fez um barulho insuportavelmente alto, como se alguém tivesse estourado um rojão no banheiro de sua casa no momento em que você estava dentro do aposento.
Pânico. Gritos. As cadeiras novas viradas no chão. Em 30 segundos, repórteres do mundo todo corriam pela rua em busca de um abrigo seguro, liderados pelo veterano John F. Burns, do jornal "The New York Times".
As equipes de TV, que ficam no topo da sede do ministério, onde estão as antenas transmissoras, desciam as escadas aos tropeções. Reunidos no estacionamento em frente, os grupinhos tentavam entender o que tinha acontecido, já que o prédio continuava em pé.
Então, a revelação.
A barulheira infernal tinha vindo do alto do edifício, onde se escondia até então despercebida uma bateria antiaérea iraquiana que tinha tentado derrubar o avião da coalizão anglo-americana que soltou as duas bombas.
A presença da artilharia no telhado do Ministério da Informação, que é também onde se reúne diária e obrigatoriamente a imprensa internacional, nunca havia sido confirmada pelo governo. A confirmação de que afinal somos todos parte do mesmo alvo veio ontem ao vivo e em cores, com som estéreo.
Passada a confusão inicial, houve uma correria para os carros e começou uma perseguição pela cidade para saber qual equipe seria a primeira a descobrir a localização exata do alvo das duas bombas. O pega-pega se explica.
É que o governo iraquiano raramente divulga os lugares atingidos pelos ataques norte-americanos, a não ser quando interessa politicamente (alvos civis, por exemplo) ou quando é impossível negar (caso da sede da rádio e da TV estatais, que fica ao lado do centro de imprensa).
Uma vez nos carros, no entanto, é preciso uma negociação minuto a minuto com o motorista e o guia contratados, ambos na maioria das vezes apontados pelo próprio ministério e obrigados a apresentar um relatório das atividades diárias aos seus superiores.
Eles podem não querer levar os jornalistas até o alvo, ou autorizar a ida mas proibir as fotografias e imagens, ou autorizá-las mas se recusar a servir de intérprete com a população local, que na maioria das vezes só fala árabe.
A dupla contratada pela Folha aceitou a tarefa. Depois de meia hora rodando a cidade, não conseguimos encontrar os tais alvos das duas bombas recém-lançadas -no final das contas, nenhuma das equipes conseguiu.
No caminho, porém, descobrimos que a sede da estatal de telecomunicações iraquiana tinha sido atingida por diversos mísseis na noite anterior, fato que havia sido escondido pelo governo iraquiano até então.

Quando bigode vale mais que mulher

Cada iraquiano pode casar legalmente com até quatro mulheres. A maioria da população masculina urbana tem uma só, não por ocidentalização ou pudor, mas por falta de dinheiro mesmo. Os homens de classe média geralmente têm duas. Três ou quatro só os membros da elite ou do governo, o que quase sempre é a mesma coisa.
 
Mas mais do que dinheiro, poder e mulheres, o que o iraquiano inveja mesmo é um bom bigode. Quanto mais basto, bem cortado e cheio, mais hombridade o acessório natural transmite a seu dono. Quem não tem é considerado imaturo ou contaminado demais pelos hábitos ocidentais.
 
Os homens que ouvi me ensinam que os fios não podem cair sobre o lábio superior. E que pintar o cabelo tudo bem, mas pintar o bigode seria de uma gafe inacreditável. E confirmam: "harabichueba", o popular xingamento árabe que os brasileiros aprenderam a falar de brincadeira, continua na ativa. Mas a grafia e a pronúncia corretas aqui são outras.
 
"Harabishuarbek" seria certo, sendo "hara" gíria para fezes e "shuarbe" a tradução de bigode. "Merda no seu bigode!", xingam os iraquianos.
 
Quando querem garantir que vão cumprir uma promessa, dizem "eu corto o meu bigode!". E quando estão com muita raiva de uma pessoa, gritam "eu amaldiçôo o seu bigode!", como fez antes da guerra o embaixador do Iraque na ONU falando ao embaixador do Kuait.
 
Como o chefe, todos os ministros-generais de Saddam Hussein têm bigode. A exceção é Mohammed Said Al-Sahaf, da Informação. É também o que fala o melhor inglês e, de longe, o mais irônico e mordaz da turma.
 
Pergunte o nome completo a qualquer iraquiano de mais de 30 anos e ele vai se atrapalhar de cara. A gagueira temporária não é necessariamente má-fé. Quando assumiu o poder, Saddam Hussein fez passar uma lei que obrigava as pessoas a assinar com o nome próprio seguido do nome próprio do pai seguido do do avô, e não mais da maneira tradicional, que era nome próprio + nome da tribo/clã/vila de origem.
 
O que o motivou foi o alto número de pessoas no alto escalão de seu governo que traziam o sobrenome Tikritis, ou seja, originário da vila de Tikrit, no norte.
 
Tikrit é a cidade natal de Saddam, onde fica sua tribo.
 
Há hoje em dia seis brasileiros oficialmente no Iraque. Os dois acima assinados, um funcionário do Itamaraty que cuida da sede da ex-embaixada do país, hoje desativada, duas senhoras que moram há muito tempo por aqui, casaram-se com iraquianos e fogem da imprensa e o fotógrafo do "New York Times", que nasceu em São Paulo, mas deixou o Brasil antes de aprender a falar.
 
Ainda os carros: os ministros-generais iraquianos fazem questão de dirigir seus próprios carros. Os assessores vão no banco de trás ou ao lado, dependendo da graduação. Ser conduzido não é visto com bons olhos.
 
O modelo escolhido depende do cargo ocupado. Para os ministros, o Lumina da Chevrolet, geralmente branco, ou os tradicionais BMW e Mercedes; para as altas patentes militares, os jipes Land Cruiser da Toyota.
 
Detalhe: todos são equipados com quatro tapetinhos persas, no lugar do tradicional de borracha.
 
Ahmed e Mohammed são o equivalente de José e João de Bagdá. Em toda a roda tem pelo menos um com este nome.


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