São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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ARTIGO

As quatro guerras entre Israel e palestinos

MICHAEL WALZER

Não há "uma" guerra em curso entre Israel e Palestina, e não há apenas uma oposição entre certo e errado, justo e injusto. Quatro guerras entre israelenses e palestinos estão sendo travadas agora.
A primeira é uma guerra palestina para destruir o Estado de Israel.
A segunda é uma guerra palestina pela criação de um Estado independente contíguo a Israel, com o fim da ocupação israelense na Cisjordânia e na faixa de Gaza.
A terceira é uma guerra israelense pela segurança do país no interior de suas fronteiras de 1967.
A quarta é uma guerra israelense pela manutenção de um Grande Israel, pelas colônias e pelos territórios ocupados.
Não é fácil dizer qual das guerras está sendo travada a cada dado momento; em certo sentido, são todas simultâneas.
Pessoas diferentes estão combatendo cada uma das quatro guerras, ao mesmo tempo. Tomadas separadamente, duas das guerras são justas e duas são injustas. Mas elas não existem no "mundo real" de forma separada. É possível começar analisando cada uma delas em separado, mas não devemos nos limitar a isso.
1. A guerra contra Israel. Essa é a guerra que é "declarada" a cada vez que um terrorista ataca civis israelenses. O quer que os terroristas tenham a dizer sobre suas atividades, em termos individuais, a intenção que sinalizam ao mundo, e acima de tudo às suas vítimas, é radical e assustadora: uma política de massacre, ou remoção, ou subjugação. O objetivo do terrorismo é uma vitória total, a rendição incondicional do inimigo.
Os cidadãos judeus de Israel têm de presumir que algo semelhante é o objetivo dos atuais terroristas palestinos: o fim do Estado judaico, a remoção dos judeus. A linguagem da incitação -sermões em mesquitas palestinas, funerais nos quais o "martírio" dos terroristas suicidas é celebrado- torna clara essa intenção, e esses são os objetivos explícitos das principais organizações terroristas, Hamas e Jihad Islâmico. Mas será que se pode dizer que é esse o objetivo do movimento palestino como um todo? É isso que Iasser Arafat realmente procura?
Não é fácil interpretá-lo. Talvez Arafat ache que esteja usando os terroristas; talvez tenha a esperança de um dia matá-los ou exilá-los, depois da independência. Mas, neste momento, ele é no mínimo cúmplice do terrorismo. As perfunctórias condenações oferecidas como expiação depois de cada ataque há muito deixaram de ser convincentes.
A primeira das guerras é uma guerra real, mesmo que pareça estar fadada à derrota, com conseqüências terríveis para o povo palestino, mesmo que alguns (ou muitos) dentre os palestinos acreditem estar combatendo em um conflito diferente.
2. A guerra por um Estado independente: essa é a guerra que simpatizantes esquerdistas na Europa e nos Estados Unidos usualmente alegam que os palestinos estão travando, porque é a guerra que eles acreditam que os palestinos deveriam estar travando.
Não tenho dúvida quanto ao direito dos palestinos a um Estado, ainda que acredite que a ocupação original da Cisjordânia e da faixa de Gaza fosse justificada. Em 1967, os árabes travaram uma guerra do primeiro tipo em minha lista, contra a existência de Israel. Mas os territórios que Israel passou a controlar ao final de sua vitoriosa defesa supostamente deveriam ser usados (era isso que os líderes do país diziam à época) como ferramentas para a negociação de uma paz futura.
Quando, em lugar disso, o governo israelense começou a patrocinar e sustentar colônias instaladas além da antiga fronteira (a linha verde), conferiu legitimidade a um movimento de resistência cujo objetivo era a libertação. E quanto mais longa a ocupação, quanto mais as colônias prosperaram e se expandiram, mais forte o movimento se tornou.
De modo que estabelecer um Estado próprio é um objetivo legítimo para os militantes palestinos. A primeira Intifada (1987), com suas crianças atirando pedras, parecia ser uma luta por um Estado desse tipo, limitado à Cisjordânia e à faixa de Gaza, onde as crianças viviam. Não era exatamente uma luta não-violenta, mas seus protagonistas pareciam reconhecer a existência de limites: o objetivo não era ameaçar os israelenses de seu lado da linha verde, onde vivia a maior parte da população de Israel. E é por isso que a revolta teve sucesso em avançar o processo de paz.
A Intifada renovada iniciada em 2000 é uma luta violenta, e não se confina aos territórios ocupados. Ainda assim, as entrevistas conduzidas por jornalistas com muitos dos combatentes sugerem que eles (ou pelo menos alguns deles) consideram estar combatendo pelo fim da ocupação; o objetivo que expressam é criar um Estado independente, vizinho a Israel.
Assim, essa segunda guerra é também uma guerra verdadeira, se bem que uma vez mais não fique claro até que ponto Arafat esteja comprometido com ela.
3. A guerra pela segurança de Israel: não se sabe quantos soldados israelenses acreditam que essa seja a guerra que estão travando, mas é um número certamente elevado. A convocação de reservistas que precedeu as "incursões" israelenses à Cisjordânia em março e abril de 2002 teve resultado espantoso: mais de 95% dos soldados se apresentaram. Eles não acreditavam estar combatendo pelos territórios ocupados e pelas colônias.
Os reservistas acreditavam estar lutando por seu país ou, talvez melhor, pela sobrevivência e pela segurança de seu país. A terceira guerra é uma guerra real, e moralmente uma guerra muito importante, em defesa de lares e famílias. Mas alguns lares e famílias israelenses estão localizados do lado errado da linha verde, onde defendê-los se torna moralmente problemático.
4. A guerra pelos territórios ocupados: a direita israelense está definitivamente comprometida com esse objetivo, mas o apoio de que desfruta no país é (uma vez mais) incerto. O primeiro-ministro Ehud Barak, na conferência de Camp David, em 2000, acreditava ser capaz de vencer um referendo defendendo uma retirada quase completa, caso isso fosse parte de um acordo negociado para resolver o conflito como um todo.
Uma retirada feita sob pressão de ataques terroristas provavelmente não contaria com apoio semelhante. O terrorismo palestino é um desastre para a esquerda israelense porque, diante do terror, se torna difícil aos seus líderes mobilizar resistência contra as colônias. E isso abre caminho para que os políticos de direita defendam a colonização.
Mas a luta pelas colônias garante que não existirá paz real. Pois o movimento colonizador é o equivalente prático das organizações terroristas. Apresso-me a acrescentar que não se trata de um equivalente moral. Os colonos não são assassinos, embora haja entre eles um pequeno número de terroristas.
Mas a mensagem da atividade de colonização, para os palestinos, é muito semelhante à mensagem do terrorismo para os israelenses: queremos que vocês saiam dessas terras, ou que vocês aceitem uma posição de radical subordinação em seu próprio país. O objetivo dos colonos é criar um Grande Israel, e a realização desse objetivo implicaria na impossibilidade de existência de um Estado palestino. É nesse sentido apenas que eles se assemelham aos terroristas: querem tudo. A quarta guerra é uma guerra real.
O grande erro de dois primeiros-ministros de centro-esquerda recentes de Israel, Yitzhak Rabin e Ehud Barak, foi o de não se posicionarem firmemente como adversários da colonização, desde o começo. Se tivessem congelado as colônias e escolhido alguns assentamentos isolados para remoção, teriam provocado uma batalha política que, estou certo, seriam capazes de vencer. Como isso não aconteceu, os radicais palestinos conseguiram convencer muitos de seus conterrâneos de que um compromisso era impossível.
Preciso dizer alguma coisa sobre o "direito ao retorno", provavelmente um dos fatores cruciais para o fracasso das negociações em Camp David, no terceiro trimestre de 2000. Quanto a esse ponto, no entanto, existe desacordo entre os participantes: Arafat estava insistindo na aceitação simbólica do direito ou em um retorno efetivo dos exilados?
A maior parte dos israelenses optou por interpretar a posição de maneira literal, argumentando que aceitar esse direito abriria as portas para o retorno de centenas de milhares de palestinos, o que reverteria a atual maioria de população judaica em Israel. O retorno, alegam eles, significaria a criação de dois Estados palestinos. Entre os palestinos, apenas Sari Nuseibeh, representante da Autoridade Nacional Palestina em Jerusalém, se dispôs a afirmar de maneira clara que a renúncia ao direito de retorno é o preço da criação de um Estado.
Essa posição me parece correta, já que defender o retorno na verdade reacende o conflito de 1947-48, o que não é uma boa idéia mais de meio século mais tarde. Hoje, se os palestinos desejam vencer sua guerra pela independência, precisam reconhecer que Israel já fez o mesmo. Talvez um certo número de refugiados retorne a Israel, e um número maior à Palestina. Os demais terão de ser assentados em outros países. É hora de tratar de sua miséria prática, e não de seus direitos e aspirações simbólicos.
De que maneira se poderia julgar as quatro guerras? Que espécie de juízo podemos fazer quanto a quem apoiar ou combater, e quando? Muito depende de questões que não respondi. Quantos israelenses, quantos palestinos, endossam cada uma das guerras?
Ou, talvez melhor, deveríamos perguntar o que aconteceria se cada um dos lados vencer sua guerra justa. Se os palestinos puderem criar um Estado de seu lado da linha verde, será que encarariam ou pelo menos será que uma maioria suficiente deles encararia a situação como uma realização de suas aspirações nacionalistas? Aceitariam um Estado desse tipo como ponto final do conflito? O comportamento de Arafat não sugere uma resposta esperançosa.
E será que a defesa israelense de seu Estado se limitaria à linha verde? O comportamento de Sharon no poder também não oferece resposta esperançosa.
A primeira guerra precisa ser derrotada ou abandonada em definitivo. Os críticos de Israel na Europa e nas Nações Unidas cometeram um erro terrível, tanto moral quanto político, ao não reconhecer a necessidade dessa derrota. Condenaram cada ataque terrorista aos civis israelenses, mas ainda não reconheceram, quanto mais condenaram, os ataques como um todo como uma guerra injusta contra a existência de Israel. Houve muitas desculpas para o terrorismo, esforços demais para "compreender" o terrorismo como resposta à opressão dos ocupantes.
Vencer a segunda das guerras, pelo estabelecimento de um Estado palestino, depende de perder ou de renunciar à primeira. Essa dependência, em minha opinião, é moralmente clara; mas nem sempre foi clara politicamente. Se um dia houver uma intervenção estrangeira no conflito entre Israel e os palestinos, uma das metas deveria ser esclarecer a relação entre a primeira e a segunda guerras (e entre a terceira e a quarta). Os palestinos só poderão ter um Estado quando tornarem claro aos israelenses que o Estado que desejam seria um vizinho, e não um substituto, de Israel. A relação entre a terceira e a quarta guerras é simétrica à que existe entre as duas primeiras: a quarta, por um Grande Israel, precisa ser perdida ou abandonada, se o objetivo é vencer a terceira guerra, pela existência de Israel.
Os ataques de março e abril de 2002 às cidades da Cisjordânia, e o retorno de soldados israelenses a essas cidades em junho e julho do mesmo ano, seriam muito mais fáceis de justificar caso estivesse claro que o objetivo não era manter a ocupação, mas reduzir ou pôr fim à ameaça terrorista. Nenhum país pode renunciar a defender a vida de seus cidadãos. Mas é um prelúdio moralmente necessário a vencer essa guerra que o governo Sharon declare seu compromisso político para com o fim da ocupação e a remoção dos colonos.
Quase todo mundo tem um plano de paz: uma paz para quatro guerras. E o plano de todos (exceto dos palestinos e israelenses que lutam para ganhar tudo) é mais ou menos o mesmo. É preciso que haja dois Estados, divididos por uma fronteira próxima à linha verde, com mudanças definidas por acordo mútuo. Sobre como chegar a esse ponto, e como garantir que os dois lados lá se mantenham, há profundo desacordo, inclusive no interior de ambas as comunidades.
Os palestinos precisam renunciar ao terrorismo; os israelenses precisam renunciar à ocupação. De fato, renúncias não parecem prováveis, se levarmos em conta as lideranças existentes dos dois lados. Mas existe um significativo movimento pacifista em Israel, e diversos partidos políticos que aceitam renunciar aos territórios. Entre os palestinos, se bem que não exista movimento comparável, há pelo menos alguns pequenos sinais de oposição aos ataques terroristas. Os possíveis avanços talvez precisem surgir independentemente, dos dois lados, e inicialmente vindos de fora daquilo que costumamos designar como "círculos dirigentes".
Em última análise, os envolvidos nas guerras dois e três precisam derrotar os envolvidos nas guerras um e quatro. O caminho para a paz começa com essas duas batalhas internas. Existe uma forma de envolvimento internacional, mais ideológica que militar, que poderia ser genuinamente útil. É extremamente importante que os colonos e os terroristas percam sua legitimidade. Mas é preciso que isso aconteça ao mesmo tempo, e com uma certa dose de inteligência moral.
Só quando os críticos europeus de Israel estiverem preparados para dizer aos palestinos que não haverá assistência a uma Autoridade Nacional Palestina cúmplice do terrorismo será possível que solicitem aos críticos americanos dos palestinos que transmitam mensagem semelhante ao governo israelense. Os intelectuais dedicados ao internacionalismo poderiam servir a essa causa explicando e defendendo as duas mensagens simultaneamente.
Tentei refletir a complexidade do conflito entre Israel e os palestinos. Não posso me pretender perfeitamente objetivo. O crucial é que a existência de quatro guerras seja reconhecida.
A maior parte dos analistas não o faz, e produz caricaturas ideológicas do conflito. É fácil ridicularizar essas caricaturas, mas o efeito delas é letal. Pois elas encorajam palestinos e israelenses a persistir na primeira e na quarta guerras. Aqueles que se preocupam com o Oriente Médio têm a obrigação de não agir assim.


Esta é uma versão reduzida de artigo publicado na revista "Dissent".


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