São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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CHOQUE NA FRANÇA

Com o crescimento da extrema direita francesa, a aversão à União Européia volta a ser debatida

Le Pen capitaliza sentimento antieuropeu

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Mitos e verdades cercam o chamado "sentimento antieuropeu", tão em voga ultimamente por conta da passagem do líder de extrema direita Jean-Marie Le Pen para o segundo turno da eleição presidencial francesa, porém um fato é irrefutável: direta ou indiretamente, ele existe e tem influência sobre a cena política do país.
Raposa velha da extrema direita e afilhado político de Pierre Poujade -líder populista e antieuropeu dos anos 50 e 60-, Le Pen soube perceber o significado do resultado apertado do plebiscito sobre a adesão da França ao Tratado de Maastricht (1992, que reformou diversas instituições européias e criou o euro), de acordo com analistas ouvidos pela Folha.
Pela primeira vez desde a assinatura do Tratado de Roma, em 1957 -quando foi firmado o Tratado Constitutivo da Comunidade Européia-, esse plebiscito propiciou aos opositores da integração européia um fórum de discussão e uma oportunidade para organizar suas ações. Após uma acalorada campanha, 51,05% dos votantes aprovaram Maastricht.
"No pleito do último domingo, por volta de 40% dos eleitores votaram em candidatos declaradamente anti-União Européia [UE]. Isso constitui uma porcentagem um pouco inferior à do "não" a Maastricht, que foi de pouco menos de 49%. Oportunista, Le Pen percebeu que esses 49% eram uma clientela eleitoral que ninguém conseguia atrair e intensificou seus ataques à UE", analisou Dominique Reynié, do Instituto de Estudos Políticos de Paris.
Ademais, segundo Christian Lequesne, diretor-adjunto do Centro de Estudos e de Pesquisas Internacionais, de Paris, exceto jovens desempregados, o eleitorado de Le Pen "provém sobretudo das faixas etárias mais avançadas da população", terreno propício para a disseminação de medos. Com isso, temas como a insegurança e a aversão à UE ganham força.
Assim, os eleitores de Le Pen são geralmente aposentados ou desempregados, pessoas "decepcionadas com o marasmo que tomou conta dos partidos tradicionais e da sociedade", de acordo com Anne-Marie Le Gloannec, do Centro Marc Bloch, um instituto de pesquisas situado em Berlim. "A busca pelo voto de centro provocou uma forte uniformização."
Restam, todavia, dúvidas cruciais sobre o sentimento antieuropeu: o que exatamente temem as pessoas que o nutrem e o que pode fazer o bloco europeu para combater o crescimento desse fenômeno. Este, para Josep Piqué, chanceler da Espanha -que ocupa a presidência da UE até o final de junho-, tem de ser debatido "em âmbito comunitário".
"Com frequência, a UE é confundida com a globalização, pois muitas de suas ações são relacionadas à abertura de mercados ou à diminuição de subvenções, por exemplo. Isso fornece munição a candidatos populistas, que insistem na tecla da "distância existente entre Bruxelas e Paris'", explicou Jean Chiche, do Centro de Estudo da Vida Política Francesa.
Uma prova dessa assimilação é que a integração européia não foi tratada diretamente na campanha eleitoral. "Os partidos tradicionais não tinham discutido o tema até o último domingo. Contudo, indiretamente, a UE fez parte da campanha. Afinal, muito foi dito sobre o papel da França no mundo e na Europa e sobre a globalização", apontou Le Gloannec.
Além disso, algumas decisões européias realmente afetam o cotidiano das populações -muitas vezes, negativamente. Na França, há o caso dos caçadores de um tipo de pássaro que foram proibidos de caçar porque se tratava de pássaros migratórios -e sua morte prejudicava o ecossistema de uma região da Espanha. No Reino Unido, os pecuaristas não gostaram nada de ter de sacrificar seus animais suspeitos de ter contraído o mal da vaca louca.
Mesmo assim, para Lequesne, muitos eleitores de Le Pen não conhecem o impacto que a saída da França da UE, como preconiza o candidato, teria sobre sua economia. "As pessoas nem imaginam os danos que essa medida acarretaria. Por exemplo, os agricultores deixariam de receber fundos da Política Agrícola Comum e ficariam fragilizados ante a concorrência externa", analisou.

Déficit democrático
É irrefutável que o bloco europeu sofre um déficit democrático. Afinal, a maior parte de suas decisões relevantes é tomada por membros dos Executivos nacionais. "O principal órgão decisório da UE é o Conselho de Ministros, que, obviamente, é composto pelos ministros de cada país. Outra instituição de peso é a Comissão Européia, cujos membros também não são eleitos de modo direto", indicou Le Gloannec.
"Assim, é preciso que esse déficit democrático seja debatido na Convenção sobre o Futuro da Europa, que definirá o formato do bloco após sua expansão para o leste do continente. Senão os políticos populistas continuarão a dizer que Bruxelas só atrapalha a vida dos cidadãos", acrescentou. Anteontem, o presidente da Comissão Européia, Romano Prodi, afirmou que a crise francesa era um "choque necessário".
Para Lequesne, a classe política tradicional também é responsável pelo uso do sentimento antieuropeu pelos extremistas. "Ninguém fala bem da UE. O sucesso da introdução do euro, por exemplo, quase não foi mencionado pelos candidatos "democráticos". Esse erro permitiu que uma visão distorcida da UE fosse propagada."
Em vários países europeus, esse quadro preocupa, já que partidos de extrema direita têm encontrado respaldo popular e, portanto, obtido vitórias eleitorais. A Áustria e a Itália, por exemplo, contam com extremistas anti-UE em suas coalizões governamentais.


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