São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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CHOQUE NA FRANÇA

ARTIGO

Votação em Le Pen causa vergonha e ira

BERNARD-HENRI LÉVY

É uma tragédia que esses 17% dos franceses, sejam quais forem suas razões, tenham votado no partido do ódio, da guerra civil e do racismo.
É uma vergonha para o país que fez sermões aos austríacos quando votaram em Haider, aos italianos quando votaram em Berlusconi e que, agora, se vê com Le Pen, o pior dos três, frente a frente com Chirac.
Vergonha e ira, diante dos irresponsáveis que brincam com o fogo há 20 anos e que, à custa de renúncias, adiamentos, acomodações, à força de nos dizer sem parar que Le Pen é um político como os outros e que o voto na Frente Nacional não passa de um voto de protesto, do qual não será preciso ouvir nem o saudosismo problemático nem os apelos à violência, o banalizaram, o inscreveram na paisagem e, desse modo, levaram, no último domingo, ao penúltimo degrau de sua resistível ascensão.
Vergonha, e mais ira, ante os canalhas que hoje incendeiam sinagogas e ontem depredavam estádios de futebol e vaiavam a Marselhesa. A esses, dizíamos: "Vocês falam como Le Pen, vocês se comportam como Le Pen, vocês preparam a cama para Le Pen e os criminosos habituais que o cercam, ao levar a eles, de bandeja, uma França com a qual sonham e, ainda por cima, permitir que eles façam o papel de moderados, salvadores".
E não é que chegamos a isso mesmo: os defensores de Vichy, essas pessoas que só gostam da França doente, derrotada, humilhada, esses representantes de uma extrema direita que um antigo premiê gaullista descreveu, no passado, como "racista, anti-semita e xenófoba", esses outros destruidores (mas de instituições e de almas), esses homens que nunca esconderam o ódio que nutrem pela República, estão em posição de ver um dos seus lançar sua investida mais simbólica.
Ira, diante da extraordinária leviandade de milhares de eleitores que, confundindo democracia com espetáculo, se decidiram com base num gesto, num assobio, numa crise de lágrimas ou um jato de catchup, escolhendo uma candidata porque a achavam simpática, rejeitando outro pelo único motivo de considerá-lo excessivamente "rígido", "velho" ou "brega", escolhendo rostos em lugar de idéias, fisionomias e não programas, renunciando, pela primeira vez, a votar com a memória e aceitando, em sua embriaguez, essa anulação do campo da memória, da história e das convicções pela teleobjetiva da mídia e de seus clichês.
Ira, sim, contra todos aqueles que, ao jogar com os pequenos candidatos como se zapeia pelos canais da televisão, mergulharam a França numa situação de pesadelo.
Isso dito, já não é mais hora nem para essa ira nem para essa vergonha.
Ainda não é chegada a hora, tampouco, de escrever a história dessa lepra vagarosa, essa lenta decomposição do político e do social, da qual acabamos de chegar à derradeira etapa.
O que é urgente agora -a única urgência- é nos refazermos, é apagar o absurdo daquilo que acaba de acontecer, é fazer com que o segundo turno redima a ignomínia do primeiro. A única verdadeira urgência é agir para que não apenas Chirac vença, mas para que Le Pen seja esmagado.
Nem uma só voz deve se ausentar.
Nem um só voto deve ser deixado de lado desta vez.
É preciso transformar o voto em Chirac no voto contra Le Pen.
É preciso que esse voto seja tão límpido, tão maciço, que se torne, não um ato de quitação ao presidente em término de mandato, mas um recado inequívoco ao aventureiro cuja simples presença nos palanques da campanha, durante 15 dias, fará de nós motivo de chacota em todo o mundo.
É vital não apenas "barrar o caminho da Frente Nacional" (ousamos esperar que isso já seja subentendido), mas gerar, em todo o país, uma reviravolta que o faça recair para os 10% ou 15% aos quais deveria ter se limitado, não fosse o nível inusitado de abstenção e o clima deletério que marcaram o primeiro turno. É vital mudar, nos espíritos dos eleitores, a própria natureza do pleito, transformando o segundo turno num grande referendo em favor dos princípios republicanos que os seguidores de Le Pen rejeitam e que são nosso solo, nosso cimento, nossa constituição comuns.
Que Jacques Chirac seja ou não o homem da situação, que ele possua ou não a autoridade necessária para o papel, que haja qualquer dificuldade, aos olhos desses representantes da defunta "esquerda plural", em enxergá-lo como baluarte da democracia e do direito, essas são questões sobre as quais o mínimo que se pode dizer é que teria sido melhor formulá-las antes. Ele está aqui, e é só isso. Logo, não temos outra escolha.
Alguns dos derrotados (Fabius, Mamère, Hue, Strauss-Kahn) compreenderam isso desde os primeiros minutos, e o fato de o terem dito os honra.
Outros (como Besancenot) terão de compreender e declará-lo, por sua vez. E precisam fazê-lo com o mínimo de reservas, de cálculos, de rancores. Sempre haverá tempo, depois das próximas duas semanas, para pensar nas eleições legislativas.
De minha parte, eu que, em 30 anos, nunca votei na direita, o farei no dia 5 de maio. Eu o farei no espírito que expus. E, no fundo, sem me deixar abater.


Bernard-Henri Lévy, 53, é um dos expoentes da "nova filosofia" francesa e escreveu, entre outros, "O Século de Sartre" (2000). Foi correspondente de guerra nos anos 70 e fez parte do Grupo de Especialistas do presidente François Mitterrand entre 1973 e 1976.


Tradução de Clara Allain


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