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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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ARTIGO

Os EUA podem bancar o preço da vitória?

PAUL KENNEDY

O mundo acaba de fazer uma retrospectiva do 11 de Setembro. Enquanto isso, outro aniversário -diferente, mas correlato- também merece ser objeto de nossa reflexão. Foi há quase um ano que o governo Bush emitiu seu hoje famoso documento intitulado ""A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América". A intenção era que fosse uma afirmação clara e abrangente da política externa norte-americana pós-Guerra Fria, pós-11 de Setembro, algo que pudesse prever desafios futuros e cobrir todas as contingências possíveis. Passados 12 meses -e eles estão entre os 12 meses mais turbulentos da história moderna-, o momento se presta a uma avaliação tentativa da situação.
A Estratégia de Segurança Nacional era surpreendentemente holística em algumas partes, diante da visão prevalecente na mídia mundial de que o governo Bush tinha uma pauta estreita, unilateralista e militarista. O documento falava em tendências globais urgentes tais como danos ambientais, pressões demográficas e migratórias, crescente pobreza e falhas na área dos direitos humanos. E ele reconhecia a necessidade de se trabalhar com e por meio de organizações internacionais para enfrentar essas crises.
Mas, se o ano que passou constitui algum indicativo válido, seremos obrigados a concluir que o documento é muito mais um artifício retórico do que um compromisso sério assumido com a ação. É verdade que houve o pedido bem-vindo da Casa Branca de bilhões de dólares adicionais para o combate à Aids na África, e também é verdade que os EUA agora pagam sua contribuição anual à ONU. Mas tanto o governo Bush quanto o Congresso permanecem neuroticamente desconfiados de qualquer acordo, organismo ou ação internacional que seja capaz de prejudicar a preciosa ""soberania" americana. E suas contribuições para a assistência ao desenvolvimento no exterior, em termos de porcentagem do Produto Nacional Bruto, continuam as menores entre todos os países adiantados. A ""trilha sonora" da Estratégia de Segurança Nacional pode ter uma única melodia para todo o mundo, mas a banda nacional está fora do tom.
É claro que os EUA não são o único país cujo governo diz uma coisa e faz outra. Se fôssemos criar um Índice Global de Hipocrisia, os EUA provavelmente ficariam na metade da escala, bem abaixo de China, Rússia, Arábia Saudita, França, Líbia, Coréia do Norte e outros países. É lamentável que a maior potência do mundo manifeste uma distância tão grande entre suas palavras e suas ações, e mais lamentável ainda quando seu presidente afirma que o "american way" é o melhor modelo de sucesso nacional. Qualquer pessoa familiarizada com Maquiavel e outros realistas (Bismarck ou Kissinger, por exemplo) saberá que tais afirmações constituem uma falha comum. As grandes potências com frequência precisam cometer atos indesejáveis e assumir compromissos constrangedores.
Outros aspectos da Estratégia de Segurança Nacional parecem ser muito mais questionáveis. Comecemos pela afirmativa de que os EUA pretendem manter-se tão à frente de qualquer rival possível em termos de hegemonia mundial que seria inútil e desaconselhável qualquer outro país sequer cogitar em lhe lançar um desafio. Como nenhum outro país ou entidade política tem condições econômicas de gastar US$ 400 bilhões por ano com suas forças militares, como fazem os EUA, os inimigos e rivais americanos vão recorrer a métodos assimétricos de agressão. Os ataques da Al Qaeda em 2001 e as emboscadas a soldados americanos no Iraque e no Afeganistão são exemplos óbvios. Quanto mais o Pentágono injetar dinheiro em novos caças, mais seus adversários optarão por uma guerra irregular e obscura. E, embora as potências em ascensão que são a China e a Índia possam não tentar combater os EUA em alto-mar, elas poderão -se movidas pelo ressentimento em relação à hegemonia americana- sentir a necessidade de desenvolver um meio mais sofisticado para impedir as frotas americanas de se aproximarem das costas asiáticas. Dentro de alguns anos, a potência hegemônica terá de refletir com cuidado antes de enviar um porta-aviões de batalha para o estreito de Taiwan. Dinheiro nem sempre compra segurança.
Outro aspecto questionável do documento é a afirmação confiante que ele faz de que os EUA, sempre que necessário, adotarão ações preventivas para esmagar possíveis ameaças do exterior (embora avise outros países de que eles próprios não devem recorrer a medidas preventivas). Deixando de lado a natureza dúbia da doutrina no direito internacional, tal estratégia é, em termos práticos, difícil de praticar com acerto. O ataque anglo-americano ao Iraque é um exemplo. O governo americano, atolado na guerra de guerrilha em todo o território iraquiano, agora tenta convencer outros países a ajudar a pacificar e reconstruir esse país devastado. Agir por conta própria, agir de maneira preventiva, preterir as soluções diplomáticas às militares, tudo isso parece ser o estratagema duvidoso de um país que quer manter sua posição privilegiada nas questões mundiais. Menos soberba e mais paciência seriam uma combinação melhor.
Finalmente, há o problema da vitória ""a qualquer preço". Depois que a guerra começou, o subsecretário da Defesa Paul Wolfowitz disse que o Iraque financiaria sua própria reconstrução, e em relativamente pouco tempo. Quão irônica soa essa declaração agora! O presidente Bush pediu ao Congresso uma verba adicional de US$ 87 bilhões para financiar a reconstrução civil e a segurança militar no Iraque e Afeganistão. Essas verbas maciças vão aumentar o desnível já assustador entre a receita e as despesas federais e conferir ao Partido Democrata, até agora tão acovardado, uma chance de atacar o líder imperial. Essa vulnerabilidade explica a relutante decisão de devolver a questão do Iraque ao Conselho de Segurança da ONU, na esperança de conseguir doadores e tropas de países como Alemanha, Rússia, França e Índia.
Em suma, a Estratégia de Segurança Nacional não está se saindo bem. Ela bateu de frente com a realidade. Ninguém de boa vontade deseja qualquer mal às forças americanas e suas aliadas no Iraque, e todos certamente torcem pela chegada da democracia, prosperidade e paz àquele país tão problemático. Existem malfeitores que procuram frustrar essas metas, e esses malfeitores precisam ser derrotados. Mas os avisos feitos antes da invasão estão mostrando ter fundamento. A aposta iraquiana do presidente Bush virou um suplício em Bagdá.
O 11 de Setembro foi lembrado com dignidade, graça e determinação. Mas isso não nos exime de cobrar aqueles que nos asseguraram ter um mapa e uma grande estratégia para conduzir a América em segurança pelo século 21.


Paul Kennedy é professor de história na Universidade Yale e autor de "Ascensão e Queda das Grandes Potências" (Campus)
Tradução de Clara Allain

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