São Paulo, quinta-feira, 29 de janeiro de 2004

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IRAQUE OCUPADO

Inquérito julga infundada reportagem que acusou governo de inflar ameaça iraquiana; presidente da BBC se demite

Juiz livra Blair e culpa BBC no caso Kelly

FÁBIO ZANINI
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM LONDRES

O aguardado relatório judicial sobre a morte do cientista britânico David Kelly, divulgado ontem, inocenta o primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair, de conduta "desonrosa, oculta ou duvidosa" no episódio e ataca duramente a rede de comunicações estatal BBC por "conduta falha".
A acusação levou o presidente da BBC, Gavyn Davies, a pedir demissão do cargo ontem.
Em pronunciamento de mais de uma hora na TV, lorde Hutton, juiz da Corte Suprema responsável pelo inquérito independente, afirmou que não tinha fundamento a acusação da BBC de que Blair tornou "mais sexy" o dossiê sobre as armas de destruição em massa iraquianas para justificar a invasão ao país.
Kelly, assessor do Ministério da Defesa, foi encontrado morto em 18 de julho passado, em um bosque perto de sua casa. Hutton disse confiar na versão policial de que ele teria se suicidado.
Cerca de uma semana antes de sua morte, Kelly fora identificado pelo Ministério da Defesa como sendo a fonte de reportagem veiculada em maio de 2003 no programa de rádio "Today", na qual o jornalista Andrew Gilligan, correspondente da área de defesa da BBC, alegou que o governo havia inflado seu dossiê sobre o Iraque.
O suicídio de Kelly foi atribuído à pressão que ele teria sentido após ter tido seu nome revelado como fonte da reportagem.
Segundo Hutton -que desde o início da investigação, em agosto, entrevistou 74 testemunhas, incluindo Blair-, o governo decidiu revelar que o cientista era a fonte da reportagem por "receio de ser acusado de esconder informações", pois o nome "viria a público de qualquer maneira".
Em fala ao Parlamento após a divulgação do relatório, Blair exigiu uma retratação da BBC: "Eu simplesmente peço àqueles que fizeram essas acusações e as repetiram durante todos esses meses que as retirem completamente".
Mas Blair não ficou totalmente livre de críticas no relatório de 328 páginas. O magistrado concluiu que a intenção do premiê de reunir um dossiê convincente sobre a necessidade de ir à guerra contra o Iraque pode ter "subconscientemente influenciado" os serviços de inteligência a utilizar uma linguagem mais forte do que teriam usado em outra situação.
Mas o juiz rejeita a possibilidade de o dossiê ter incluído dados que os serviços de inteligência sabiam ser falsos ou pouco confiáveis.
Além disso, segundo o juiz, o Ministério da Defesa deveria ter tido o cuidado de informar Kelly de que seu nome viria a público. O cientista é criticado por ter rompido o código de conduta dos servidores públicos ao ter conversas não-autorizadas com jornalistas.

BBC falhou, diz juiz
As críticas mais severas ficaram mesmo para a BBC. A reportagem do jornalista Andrew Gilligan, que acusava o governo de ter exagerado na afirmação de que o Iraque poderia atacar em 45 minutos com armas de destruição em massa, "não tem fundamento", segundo Hutton.
O juiz disse que não era possível ter certeza sobre o que Kelly e Gilligan conversaram, mas disse estar convencido de que o cientista não afirmou ao jornalista que o então assessor de comunicações de Blair, Alastair Campbell, seria a pessoa responsável por incluir a afirmação no dossiê.
"O sistema editorial da BBC foi defeituoso porque permitiu que a reportagem de Gilligan fosse ao ar sem que os editores tivessem visto o que ele diria", disse o juiz. Para Hutton, a BBC falhou ao não examinar as anotações da entrevista com Kelly e não investigar as ações de Gilligan corretamente.
O diretor-geral da BBC, Greg Dyke, desculpou-se, mas disse que nunca havia acusado o primeiro-ministro de ter mentido.
"A BBC reconhece que algumas das acusações-chave citadas por Gilligan eram falsas, e nos desculpamos por isso", declarou. "No entanto nós queremos mencionar novamente que em nenhum momento nos últimos oito meses acusamos o primeiro-ministro de ter mentido e dissemos isso publicamente em várias ocasiões", prosseguiu Dyke.
Anteriormente, a corporação já havia anunciado uma revisão em seus procedimentos internos de checagem. Nos dias que precederam a divulgação do relatório, segundo a Folha apurou, os funcionários foram orientados a cobrir o caso de maneira objetiva e imparcial e a não dar entrevistas. Essa tarefa ficaria a cargo da assessoria de imprensa da empresa.
Também foi restrita a prática de jornalistas da BBC de contribuírem com outros veículos de comunicação.
Após a divulgação do relatório, a família do cientista afirmou que "o governo deve adotar medidas para evitar que o sofrimento de Kelly se repita".


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