|
Próximo Texto | Índice
IRAQUE OCUPADO
Inquérito julga infundada reportagem que acusou governo de inflar ameaça iraquiana; presidente da BBC se demite
Juiz livra Blair e culpa BBC no caso Kelly
FÁBIO ZANINI
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM LONDRES
O aguardado relatório judicial
sobre a morte do cientista britânico David Kelly, divulgado ontem,
inocenta o primeiro-ministro do
Reino Unido, Tony Blair, de conduta "desonrosa, oculta ou duvidosa" no episódio e ataca duramente a rede de comunicações estatal BBC por "conduta falha".
A acusação levou o presidente
da BBC, Gavyn Davies, a pedir demissão do cargo ontem.
Em pronunciamento de mais de
uma hora na TV, lorde Hutton,
juiz da Corte Suprema responsável pelo inquérito independente,
afirmou que não tinha fundamento a acusação da BBC de que
Blair tornou "mais sexy" o dossiê
sobre as armas de destruição em
massa iraquianas para justificar a
invasão ao país.
Kelly, assessor do Ministério da
Defesa, foi encontrado morto em
18 de julho passado, em um bosque perto de sua casa. Hutton disse confiar na versão policial de
que ele teria se suicidado.
Cerca de uma semana antes de
sua morte, Kelly fora identificado
pelo Ministério da Defesa como
sendo a fonte de reportagem veiculada em maio de 2003 no programa de rádio "Today", na qual
o jornalista Andrew Gilligan, correspondente da área de defesa da
BBC, alegou que o governo havia
inflado seu dossiê sobre o Iraque.
O suicídio de Kelly foi atribuído
à pressão que ele teria sentido
após ter tido seu nome revelado
como fonte da reportagem.
Segundo Hutton -que desde o
início da investigação, em agosto,
entrevistou 74 testemunhas, incluindo Blair-, o governo decidiu revelar que o cientista era a
fonte da reportagem por "receio
de ser acusado de esconder informações", pois o nome "viria a público de qualquer maneira".
Em fala ao Parlamento após a
divulgação do relatório, Blair exigiu uma retratação da BBC: "Eu
simplesmente peço àqueles que
fizeram essas acusações e as repetiram durante todos esses meses
que as retirem completamente".
Mas Blair não ficou totalmente
livre de críticas no relatório de 328
páginas. O magistrado concluiu
que a intenção do premiê de reunir um dossiê convincente sobre a
necessidade de ir à guerra contra
o Iraque pode ter "subconscientemente influenciado" os serviços
de inteligência a utilizar uma linguagem mais forte do que teriam
usado em outra situação.
Mas o juiz rejeita a possibilidade
de o dossiê ter incluído dados que
os serviços de inteligência sabiam
ser falsos ou pouco confiáveis.
Além disso, segundo o juiz, o
Ministério da Defesa deveria ter
tido o cuidado de informar Kelly
de que seu nome viria a público. O
cientista é criticado por ter rompido o código de conduta dos servidores públicos ao ter conversas
não-autorizadas com jornalistas.
BBC falhou, diz juiz
As críticas mais severas ficaram
mesmo para a BBC. A reportagem
do jornalista Andrew Gilligan,
que acusava o governo de ter exagerado na afirmação de que o Iraque poderia atacar em 45 minutos
com armas de destruição em
massa, "não tem fundamento",
segundo Hutton.
O juiz disse que não era possível
ter certeza sobre o que Kelly e Gilligan conversaram, mas disse estar convencido de que o cientista
não afirmou ao jornalista que o
então assessor de comunicações
de Blair, Alastair Campbell, seria a
pessoa responsável por incluir a
afirmação no dossiê.
"O sistema editorial da BBC foi
defeituoso porque permitiu que a
reportagem de Gilligan fosse ao ar
sem que os editores tivessem visto
o que ele diria", disse o juiz. Para
Hutton, a BBC falhou ao não examinar as anotações da entrevista
com Kelly e não investigar as
ações de Gilligan corretamente.
O diretor-geral da BBC, Greg
Dyke, desculpou-se, mas disse
que nunca havia acusado o primeiro-ministro de ter mentido.
"A BBC reconhece que algumas
das acusações-chave citadas por
Gilligan eram falsas, e nos desculpamos por isso", declarou. "No
entanto nós queremos mencionar
novamente que em nenhum momento nos últimos oito meses
acusamos o primeiro-ministro de
ter mentido e dissemos isso publicamente em várias ocasiões",
prosseguiu Dyke.
Anteriormente, a corporação já
havia anunciado uma revisão em
seus procedimentos internos de
checagem. Nos dias que precederam a divulgação do relatório, segundo a Folha apurou, os funcionários foram orientados a cobrir
o caso de maneira objetiva e imparcial e a não dar entrevistas. Essa tarefa ficaria a cargo da assessoria de imprensa da empresa.
Também foi restrita a prática de
jornalistas da BBC de contribuírem com outros veículos de comunicação.
Após a divulgação do relatório,
a família do cientista afirmou que
"o governo deve adotar medidas
para evitar que o sofrimento de
Kelly se repita".
Próximo Texto: Saiba mais: Estatal, BBC tem autonomia e receita garantida Índice
|