São Paulo, domingo, 29 de abril de 2007

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ARTIGO

Legado de Chirac à frente da França é subestimado

Presidente admitiu papel de seu país no Holocausto, não cedeu à extrema-direita, apoiou ingresso da Turquia na UE e iniciou na ONU oposição à invasão do Iraque

TONY JUDT

É fácil subestimar Jacques Chirac. Dentro de alguns dias os franceses vão eleger um novo presidente, e o presidente atual, 74 anos, vai se afastar do cenário político sem que sua saída seja lamentada. Ao longo de uma carreira política de quase cinco décadas, durante a qual ele foi prefeito de Paris, primeiro-ministro (duas vezes) e presidente de seu país nos últimos 12 anos, Chirac parece ter realizado pouco.
Enquanto foi prefeito (1977-1995), a corrupção municipal aumentou constantemente, apesar de ainda ser insignificante pelos padrões dos Estados Unidos. Suas promessas reiteradas de consertar as falhas nas leis de emprego e nos serviços sociais franceses foram abandonadas diante dos protestos de rua. E ele fez pouco para reconhecer ou enfrentar o problema das minorias francesas ou as insatisfações dos jovens. Em ambos os lados do Atlântico, o obituário político de Chirac está sendo escrito em termos pouco elogiosos.
Mas será que a situação da França realmente é tão grave assim? De todos os lados se ouvem chamados por "reformas" para alinhar a França mais estreitamente com as práticas e políticas anglo-americanas. O disfuncional "modelo social francês", nos asseguram freqüentemente, fracassou.

"Fracasso" positivo
Se é essa a verdade, então há muito de positivo a ser dito do fracasso. Os bebês franceses têm melhores chances de sobrevivência que os americanos.
Os franceses vivem mais que os americanos e têm saúde melhor (a um custo muito mais baixo). O desnível entre ricos e pobres é menor que nos EUA ou no Reino Unido, e há menos pobres.
Sim, a França tem alto índice de desemprego entre os jovens, graças aos empecilhos institucionalizados à geração de empregos. Mas, se os franceses tirassem os jovens de pele morena na faixa dos 18 a 30 anos do rol dos desempregados e os colocassem na prisão, como fazemos nos EUA, suas estatísticas de desemprego também pareceriam boas.
Enquanto isso, vale recordar o que Jacques Chirac fez, de fato. Em 1995 ele se tornou o primeiro presidente a abertamente reconhecer o papel exercido por seu país no Holocausto. "O ocupante foi auxiliado pelos franceses, pelo Estado francês... Naquele dia, a França realizou o irreparável". Jacques Chirac proibiu seus seguidores de aliar-se ou fazer acordos com a racista e xenófoba Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen -em contraste com François Mitterrand, que, em 1986, manipulou as leis eleitorais francesas para beneficiar Le Pen (e, com isso, enfraquecer a direita moderada).
Consciente dos vínculos da Europa com o mundo muçulmano -e do custo que teria a rejeição e humilhação da única democracia secular do islã-, Chirac apoiou de maneira firme e constante a entrada da Turquia na União Européia, posição impopular entre seus próprios eleitores conservadores. E ele iniciou e liderou a oposição internacional à guerra do presidente Bush no Iraque.
Não nos esqueçamos da francofobia histérica de 2003: não apenas a imbecilidade das "freedom fries" (batatas fritas da liberdade, em lugar de "fritas francesas"), mas também as manifestações xenófobas no Congresso, na administração e na grande imprensa americana, na qual comentaristas de destaque pediram que a França fosse "expulsa" do Conselho de Segurança e se ofereceram para deixar que os "covardes traidores" franceses segurassem nossos casacos enquanto os americanos mais uma vez travariam suas lutas por eles.
Mas Jacques Chirac estava certo. Ao enfrentar Bush -e instruir seus representantes nas Nações Unidas a bloquear uma corrida para uma guerra não provocada-, o presidente francês salvou tanto a honra da ONU quando a credibilidade da comunidade internacional.
Não é evidente que qualquer um de seus sucessores prováveis teria se saído tão bem quanto ele. Chirac tem idade suficiente para apreciar a dívida que a Europa tem com os EUA, mas é gaullista o suficiente para se opor às manias de grandeza de Washington.
Seu herdeiro aparente, Nicolas Sarkozy, não é nem uma coisa nem outra. A admiração que Sarkozy nutre pelos EUA e o conhecimento que tem do país parecem limitar-se ao índice de crescimento econômico americano. Ele se opõe à entrada da Turquia na União Européia. E seu gaullismo é maculado por um fraco por chavões de direita. Chirac jamais se rebaixou dessa maneira.
A candidata socialista, Ségolène Royal, tem um complexo de Joana d'Arc (quando anunciou sua candidatura, em outubro passado, falou sobre ouvir "chamados" e aceitar "esta missão de conquista para a França") e pratica a demagogia soft. Sobre questões políticas cruciais -a Constituição da União Européia, o ingresso da Turquia na Europa- ela vem evitando se comprometer. Muitos de seus partidários socialistas são tanto antiamericanos quanto antieuropeus; assim, é provável que Royal na Presidência irá enfraquecer a União Européia sem fortalecer de qualquer maneira a influência transatlântica da França -ou seja, precisamente a agenda dos estrategistas neoconservadores de Washington.

O destino da Europa
Nem Sarkozy nem Royal compartilham a apreciação histórica de Chirac pelo que está em jogo na construção da Europa: porque isso é importante, e porque aqueles que gostariam de dividir ou diluir a Europa estão brincando com fogo. E Chirac tem razões para se preocupar. Alguns membros novos da UE querem as duas coisas: querem uma economia com baixos impostos, ao estilo americano, desde que ela seja subscrita por subsídios dos contribuintes "ineficientes" da Europa Ocidental.
Polônia e República Tcheca recebem "fundos de solidariedade" de Bruxelas, mas saúdam os sistemas americanos de defesa antimísseis sem mesmo consultar os outros membros da UE. Quando Chirac disse aos europeus do Leste que apoiaram Bush e Blair com relação ao Iraque que eles tinham "perdido uma ótima oportunidade de calar a boca", sua reação franca incomodou a muita gente, mas ele estava com a razão.
Nas mãos de uma nova geração de políticos indiferentes ao passado, a Europa corre o risco de desfazer-se muito rapidamente. Aqueles que hoje festejam a saída de Chirac deveriam recordar o que Rhett Butler disse a Scarlett O'Hara quando ela menosprezou com impaciência os resquícios do Rxército Confederado, em "E o Vento Levou": "Não tenha tanta pressa em vê-los ir embora, querida, pois com eles se vai o último resquício de lei e ordem".
Com Jacques Chirac estamos nos despedindo do último resquício de ação de estadistas europeus de uma geração que se recordava de onde podia ir parar uma Europa desfeita. Receio que vamos sentir sua falta.


O historiador britânico TONY JUDT é professor da Universidade de Nova York e autor de "Postwar, Uma História da Europa desde 1945"

Tradução de CLARA ALLAIN


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