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ARTIGO
Legado de Chirac à frente da França é subestimado
Presidente admitiu papel de seu país no Holocausto, não cedeu à extrema-direita, apoiou ingresso da Turquia na UE e iniciou na ONU oposição à invasão do Iraque
TONY JUDT
É fácil subestimar Jacques
Chirac. Dentro de alguns dias
os franceses vão eleger um novo presidente, e o presidente
atual, 74 anos, vai se afastar do
cenário político sem que sua
saída seja lamentada. Ao longo
de uma carreira política de quase cinco décadas, durante a
qual ele foi prefeito de Paris,
primeiro-ministro (duas vezes)
e presidente de seu país nos últimos 12 anos, Chirac parece
ter realizado pouco.
Enquanto foi prefeito (1977-1995), a corrupção municipal
aumentou constantemente,
apesar de ainda ser insignificante pelos padrões dos Estados Unidos. Suas promessas
reiteradas de consertar as falhas nas leis de emprego e nos
serviços sociais franceses foram abandonadas diante dos
protestos de rua. E ele fez pouco para reconhecer ou enfrentar o problema das minorias
francesas ou as insatisfações
dos jovens. Em ambos os lados
do Atlântico, o obituário político de Chirac está sendo escrito
em termos pouco elogiosos.
Mas será que a situação da
França realmente é tão grave
assim? De todos os lados se ouvem chamados por "reformas"
para alinhar a França mais estreitamente com as práticas e
políticas anglo-americanas. O
disfuncional "modelo social
francês", nos asseguram freqüentemente, fracassou.
"Fracasso" positivo
Se é essa a verdade, então há
muito de positivo a ser dito do
fracasso. Os bebês franceses
têm melhores chances de sobrevivência que os americanos.
Os franceses vivem mais que os
americanos e têm saúde melhor (a um custo muito mais
baixo). O desnível entre ricos e
pobres é menor que nos EUA
ou no Reino Unido, e há menos
pobres.
Sim, a França tem alto índice
de desemprego entre os jovens,
graças aos empecilhos institucionalizados à geração de empregos. Mas, se os franceses tirassem os jovens de pele morena na faixa dos 18 a 30 anos do
rol dos desempregados e os colocassem na prisão, como fazemos nos EUA, suas estatísticas
de desemprego também pareceriam boas.
Enquanto isso, vale recordar
o que Jacques Chirac fez, de fato. Em 1995 ele se tornou o primeiro presidente a abertamente reconhecer o papel exercido
por seu país no Holocausto. "O
ocupante foi auxiliado pelos
franceses, pelo Estado francês... Naquele dia, a França realizou o irreparável". Jacques
Chirac proibiu seus seguidores
de aliar-se ou fazer acordos
com a racista e xenófoba Frente Nacional de Jean-Marie Le
Pen -em contraste com François Mitterrand, que, em 1986,
manipulou as leis eleitorais
francesas para beneficiar Le
Pen (e, com isso, enfraquecer a
direita moderada).
Consciente dos vínculos da
Europa com o mundo muçulmano -e do custo que teria a
rejeição e humilhação da única
democracia secular do islã-,
Chirac apoiou de maneira firme e constante a entrada da
Turquia na União Européia,
posição impopular entre seus
próprios eleitores conservadores. E ele iniciou e liderou a
oposição internacional à guerra
do presidente Bush no Iraque.
Não nos esqueçamos da francofobia histérica de 2003: não
apenas a imbecilidade das
"freedom fries" (batatas fritas
da liberdade, em lugar de "fritas
francesas"), mas também as
manifestações xenófobas no
Congresso, na administração e
na grande imprensa americana,
na qual comentaristas de destaque pediram que a França fosse
"expulsa" do Conselho de Segurança e se ofereceram para deixar que os "covardes traidores"
franceses segurassem nossos
casacos enquanto os americanos mais uma vez travariam
suas lutas por eles.
Mas Jacques Chirac estava
certo. Ao enfrentar Bush -e
instruir seus representantes
nas Nações Unidas a bloquear
uma corrida para uma guerra
não provocada-, o presidente
francês salvou tanto a honra da
ONU quando a credibilidade da
comunidade internacional.
Não é evidente que qualquer
um de seus sucessores prováveis teria se saído tão bem
quanto ele. Chirac tem idade
suficiente para apreciar a dívida que a Europa tem com os
EUA, mas é gaullista o suficiente para se opor às manias de
grandeza de Washington.
Seu herdeiro aparente, Nicolas Sarkozy, não é nem uma coisa nem outra. A admiração que
Sarkozy nutre pelos EUA e o
conhecimento que tem do país
parecem limitar-se ao índice de
crescimento econômico americano. Ele se opõe à entrada da
Turquia na União Européia. E
seu gaullismo é maculado por
um fraco por chavões de direita. Chirac jamais se rebaixou
dessa maneira.
A candidata socialista, Ségolène Royal, tem um complexo
de Joana d'Arc (quando anunciou sua candidatura, em outubro passado, falou sobre ouvir
"chamados" e aceitar "esta missão de conquista para a França") e pratica a demagogia soft.
Sobre questões políticas cruciais -a Constituição da União
Européia, o ingresso da Turquia na Europa- ela vem evitando se comprometer.
Muitos de seus partidários
socialistas são tanto antiamericanos quanto antieuropeus; assim, é provável que Royal na
Presidência irá enfraquecer a
União Européia sem fortalecer
de qualquer maneira a influência transatlântica da França
-ou seja, precisamente a agenda dos estrategistas neoconservadores de Washington.
O destino da Europa
Nem Sarkozy nem Royal
compartilham a apreciação histórica de Chirac pelo que está
em jogo na construção da Europa: porque isso é importante, e
porque aqueles que gostariam
de dividir ou diluir a Europa estão brincando com fogo. E Chirac tem razões para se preocupar. Alguns membros novos da UE querem as duas coisas: querem uma economia com baixos
impostos, ao estilo americano,
desde que ela seja subscrita por
subsídios dos contribuintes
"ineficientes" da Europa Ocidental.
Polônia e República
Tcheca recebem "fundos de solidariedade" de Bruxelas, mas
saúdam os sistemas americanos de defesa antimísseis sem
mesmo consultar os outros
membros da UE. Quando Chirac disse aos europeus do Leste
que apoiaram Bush e Blair com
relação ao Iraque que eles tinham "perdido uma ótima
oportunidade de calar a boca",
sua reação franca incomodou a
muita gente, mas ele estava
com a razão.
Nas mãos de uma nova geração de políticos indiferentes ao
passado, a Europa corre o risco
de desfazer-se muito rapidamente. Aqueles que hoje festejam a saída de Chirac deveriam
recordar o que Rhett Butler
disse a Scarlett O'Hara quando
ela menosprezou com impaciência os resquícios do Rxército Confederado, em "E o Vento
Levou": "Não tenha tanta pressa em vê-los ir embora, querida,
pois com eles se vai o último
resquício de lei e ordem".
Com Jacques Chirac estamos
nos despedindo do último resquício de ação de estadistas europeus de uma geração que se
recordava de onde podia ir parar uma Europa desfeita. Receio que vamos sentir sua falta.
O historiador britânico TONY JUDT é professor
da Universidade de Nova York e autor de "Postwar, Uma História da Europa desde 1945"
Tradução de CLARA ALLAIN
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