São Paulo, sexta-feira, 29 de julho de 2005

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TERROR EM LONDRES

Faixas chamam eletricista morto pela polícia de mártir e criticam "terrorismo" britânico; enterro será hoje

Com pesar e revolta, Gonzaga recebe corpo

LUCIANA COELHO
ENVIADA ESPECIAL A GONZAGA (MG)

Foi ao som do Hino Nacional e de "Oh, Minas Gerais" que a pequena Gonzaga, a 300 km de Belo Horizonte, recebeu ontem o corpo de Jean Charles de Menezes, 27. Seis dias antes, o eletricista mineiro que vivia em Londres desde 2001 fora morto por um erro da polícia britânica.
Pelos 70 km (e quase duas horas) de percurso entre o município de pouco mais de 5.700 habitantes no leste de Minas a Governador Valadares, onde o corpo desembarcou às 10h30 de ontem de um avião da FAB (Força Aérea Brasileira), a cena era invariável: gente aglomerada à beira da estrada, ansiosa para ver passar o carro do Corpo de Bombeiros que transportava o caixão lacrado de Jean, envolto na bandeira do Brasil. Muitos penduraram em suas casas bandeiras pretas. Alguns aplaudiam. Outros agitavam folhas de papel branco. E havia os que apenas observavam, consternados.
Mas, em Gonzaga, o sentimento ia além do pesar. Numa das muitas faixas espalhadas pela prefeitura e por amigos da família, a mensagem exprimia revolta: "Inglaterra, terrorismo não se combate com terror".
Jean, que vivia em Londres desde 2001, foi morto no último dia 22 porque policiais que vigiavam o prédio onde ele morava no bairro de Brixton, na capital britânica, o tomaram por terrorista suicida. Temendo que ele se explodisse repentinamente, dispararam à queima-roupa, dentro de um vagão do metrô, quando o brasileiro caiu no chão. Sete tiros na cabeça, um no ombro.
O governo britânico se desculpou por um "erro lamentável", mas manteve a política de atirar para matar -adotada após Londres ser palco de ataques suicidas que mataram 52 pessoas no último dia 7 e de novas tentativas de atentados que terminaram sem vítimas duas semanas depois.

"Mártir"
Os habitantes de Gonzaga não se conformam. "Jean, mártir do terrorismo inglês", diz outra faixa, esta posta em frente à igreja matriz, onde ocorreu o velório.
Além das faixas, a cidade foi toda decorada com fitas e balões verdes, amarelos e brancos para receber o corpo do eletricista. As homenagens incluíram a apresentação de uma banda, e o velório estava programado para durar 25 horas -das 14h de ontem até as 15h de hoje, horário marcado para o enterro.
A prefeitura decretou ponto facultativo ontem e feriado hoje. Ônibus vieram da zona rural e de cidades vizinhas trazendo parentes, amigos e curiosos.
Centenas de pessoas visitaram o caixão, no qual foi deixada apenas uma pequena abertura envidraçada pela qual se via somente uma parte do rosto do eletricista, dos olhos ao queixo. A fila de visitantes se estendia para fora da igreja, e ninguém, exceto os parentes, podia se exceder por mais de alguns segundos.

Punição
A história de Jean atingiu Gonzaga em cheio, especialmente porque quase um terço dos moradores da cidade, segundo o prefeito, vive no exterior.
O vereador Abel de Menezes, 57, primo do eletricista, conta que quatro de seus cinco filhos vivem nos EUA e que o exterior é considerado como destino certo de boa parte dos jovens da cidade. "Aqui é assim mesmo", resigna-se. "Não tem muito o que fazer."
"Jean falava que queria levar para Londres várias pessoas com quem ele convivia, que iríamos todos nos reunir em Londres um dia", afirmava, entre lágrimas, Kátia Armani, 27.
Prima do eletricista, ela tinha programado se mudar para o Reino Unido no fim deste ano. "Agora não sei se vou. Tenho medo dos terroristas tanto quanto da ação da polícia."
Kátia é irmã de Patrícia Armani, que dividia o apartamento em Brixton com Jean e acompanhou o corpo em seu trajeto para o Brasil junto com os primos Alex, Alessandro e Vivian, que também foram para Londres com a ajuda do eletricista.
Patrícia não sabe quando voltará para o Reino Unido, onde ajuda o primo Alex Pereira a coordenar os contatos da família com advogados e com as autoridades britânicas.

Explicações
Segundo Patrícia, a polícia de Londres ainda deve muitas explicações. "Eles disseram que seguiram Jean porque ele cometeu uma ação suspeita. Mas nunca disseram qual."
Outra queixa é que as fitas do circuito interno da estação do metrô onde Jean foi morto, que podem mostrar se o brasileiro desobedeceu à ordem dos policiais para parar e se ele estava correndo, nunca foram mostradas.
A família pedirá uma indenização, mas ainda não definiu o valor. "Isso caberá aos pais e ao irmão de Jean decidir. Por enquanto, eles estavam preocupados com a chegada do corpo", afirma o primo Alex Pereira.
Pereira, que deve voltar em duas semanas para Londres, diz estar agindo sob a orientação da célebre advogada britânica Gareth Peirce, especialista em direitos humanos ("Não há ninguém no mundo melhor do que ela").
A principal preocupação no momento, segundo ele, é que o policial que atirou em Jean -e que, segundo o jornal britânico "The Sun", está gozando de licença remunerada- seja responsabilizado.
"Acima de tudo, vamos buscar punição. As autoridades britânicas estão nos pedindo desculpas desde o primeiro dia, mas isso não adianta. Peço ao [premiê] Tony Blair que traga ele [o policial] de volta e o ponha na cadeia."
Pereira se tornou o porta-voz da família. Os pais do eletricista, Matozinhos Otônio e Maria Otônia de Menezes, têm sido mantidos sob sedativos e evitam falar com a imprensa. Dizem apenas que estão "profundamente tristes" e que, nas palavras do pai, "é difícil acreditar no que aconteceu".
Os dois vivem na zona rural de Gonzaga, onde Jean foi criado, e não têm telefone em casa. Eles têm apenas mais um filho. Giovani de Menezes, 33, mora em São Paulo e só chegou a Gonzaga nesta semana. Ele também evita declarações e pede "privacidade" para a família.


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