São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004

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ARTIGO

Toni Negri quer que esqueçamos a história


Negri acredita que seja melhor esquecer fatos inconvenientes. "A memória é uma prisão." Se tiver de escolher entre a história e o comunismo, abra mão da história

Ele dá a impressão de ter emergido de décadas criogênicas, como Austin Powers, ignorante de que o mundo girou durante esse tempo



JOHANN HARI
DO "INDEPENDENT"

No final dos anos 80, o presidente italiano Francesco Cossiga descreveu Antonio Negri como "psicopata", dizendo que ele "envenenou a mente de uma geração inteira de jovens italianos". Negri já foi acusado de assassinar o premiê italiano Aldo Moro e de ser "il grande vecchio" -o grande velho- por trás das Brigadas Vermelhas, um dos grupos terroristas mais notórios a atacar a Europa no pós-guerra antes da chegada da Al Qaeda. Enquanto esteve preso, Negri co-escreveu a bíblia da antiglobalização, "Império". Agora ele está solto -e vem para Londres. E eu estou no Instituto de Artes Contemporâneas (ICA), à sombra do Palácio de Buckingham, esperando pacientemente para ter minha mente envenenada.
"Sinto muito dizer que Antonio sumiu", explica seu agente publicitário, constrangido. Negri é aguardado para falar com um público de 200 pessoas no ICA dentro de uma hora. "Enviamos um táxi para buscá-lo e ... bem... ele não estava lá. Parece que isso é coisa que acontece."
Aproveito a oportunidade para fazer nova tentativa de terminar a leitura de ""Império". Best-seller inesperado, o livro foi escrito por Negri e seu amigo e colega acadêmico americano Michael Hardt no final dos anos 90. Graças a sua floresta de prosa sociológica insuportavelmente densa, o livro ganhou a reputação de ser uma espécie de "Finnegan's Wake" da literatura política -um livro muito comprado, mas cuja leitura dificilmente é concluída.
Eis uma frase típica de Negri, escolhida aleatoriamente: "A análise da subsunção real, quando ela é entendida como abarcando não apenas a dimensão econômica ou apenas a dimensão cultural da sociedade, mas sim o "bios" social propriamente dito, e quando ela se mostra atenta a modalidades da disciplinaridade e/ou controle, rompe com a figura linear e totalitária do desenvolvimento capitalista". Depois de 400 páginas disso, sinto-me como se tivesse sido violentado por um dicionário de sociologia.
Enquanto me esforço pela milésima vez para entender o que diabos quer dizer "biopoder" (e como ele vai motivar a "turba" a "substituir a Cidade de Deus pela Cidade do Homem"), observo um homem de terno andando em minha direção. Ele não sorri. "Preciso de vinho", diz rapidamente, enquanto acende um cigarro. "Vinho branco."
Olho para o filósofo-terrorista. Aos 71 anos de idade, ele é alto e bronzeado e anda com os ombros ligeiramente curvos. Será que esse homem de aparência inócua foi realmente causa de tanta fúria?
Negri se tornou notório pela primeira vez em meados da década de 70, quando a extrema esquerda italiana começou a se fragmentar. O Partido Comunista italiano decidiu formar um governo de coalizão com a Democracia Cristã. O fragmento da extrema esquerda que rejeitou esse "grande compromisso histórico" foi se radicalizando e se tornando mais sangrento e passou a defender a revolução imediata. Negri era o guru do novo movimento em favor da "guerra civil permanente" e da "ilegalidade de massa".
Negri identificou-se com os manifestantes violentos que escondiam o rosto por trás de capuzes de esqui. Ele escreveu: "Vivo a vida do franco-atirador, daquele que se afasta da norma, do criminoso, do trabalhador que não comparece ao trabalho. Cada vez que coloco meu capuz, sinto o calor da comunidade proletária que me cerca. Cada ato de destruição e sabotagem me parece uma manifestação de solidariedade de classe. O risco eventual não me incomoda -em lugar disso, me enche de excitação febril, como um homem que aguarda sua amante. A dor do adversário não me incomoda".
Negri sorri quando lhe entrego seu vinho. Numa declaração que ficou famosa, Michel Foucault disse certa vez que Negri foi encarcerado pelas autoridades italianas, em 1979, "por ser um intelectual". Então dou início à entrevista tentando esclarecer uma dúvida que me atormenta. Que crimes Negri de fato cometeu? Ele foi preso apenas pelo delito nebuloso de "liderar uma organização subversiva". Seu grupo, o Autonomia Operária, cometeu 174 ataques a civis e 206 assaltos; portanto, Antonio, de quais desses atos você tomou parte?
Ele me olha atentamente, traindo um leve desprazer. Em voz neutra, responde: "Nunca atentei contra a vida de ninguém". Então, dando de ombros, diz a seu tradutor: "Fui acusado de ter cometido assaltos". A acusação tinha fundamento? Ele dá uma longa tragada em seu cigarro. "Roubar dinheiro, se é necessário, posso compreender." Espero que ele continue, mas a frase fica solta no ar, como a fumaça de seu cigarro que se esvai. Você assaltou bancos? "Brecht falou que é difícil saber qual é o crime maior, se é fundar um banco ou assaltá-lo", ele responde. Mais espera, mais fumaça. Negri empurra os óculos para o alto da cabeça com o dedo médio em riste. "Concordo com Brecht", diz, acenando com a mão como se quisesse me empurrar fisicamente para outra pergunta.
Estou prestes a tentar mais uma vez, mas somos interrompidos por uma mulher irada. "Você viu isso?", ela diz a Negri, em tom de voz peremptório. Ele olha para mim, perplexo, como se isso fizesse parte da entrevista. Horrorizado, me ocorre que a mulher pode ser parente de uma das vítimas de Negri. "E então, viu?", ela repete, brava. Só então eu me dou conta da placa de "proibido fumar". Negri não olha para ela, mas coloca o cigarro no cinzeiro. Apaziguada, a funcionária do ICA se afasta. Negri pega seu cigarro novamente, volta a fumar e acena com a cabeça para que eu continue.
Está claro que ele não quer falar dos anos 70. Ele insiste que não renuncia a nada e não lamenta nada, mas tampouco quer oferecer qualquer justificativa. Termina por dizer: "Foi necessário reagir no mesmo nível que a polícia". Finalmente temos algo como uma explicação. Para ser justo com Negri, seu grupo não protestava contra um Estado liberal e democrático normal. Na época em que ele se tornou politicamente ativo, a polícia, as Forças Armadas e o Judiciário italianos estavam repletos de pessoas da extrema direita, nostálgicas de Mussolini, que, em conluio com a CIA, utilizavam táticas de Estado policial. Elas tomaram como alvo os movimentos de esquerda de base ampla da Itália, que ainda comandavam 35% dos votos, e, como hoje sabemos, chegaram a lançar ataques de terror que eram atribuídos aos manifestantes.
Mas talvez as raízes da filosofia de Negri se encontrem num passado ainda mais distante. Ele foi criado na década de 30 em Pádua, na época uma das partes mais pobres da Europa e mais infestadas de padres. Seu pai, que trabalhava para a Câmara Municipal da cidade, foi um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, em 1921, e pagou por isso com sua vida. Fascistas locais espancaram e humilharam a família, e finalmente, quanto Antonio tinha dois anos, assassinaram seu pai. "Eles o forçaram a beber óleo de rícino", explica Negri. "É como beber óleo de motor sujo. Provoca intoxicação do sangue, esvazia a pessoa."
Ele acende outro cigarro. "E assim ele morreu." Eu me pergunto como, em vista desse inferno pessoal, ele consegue trivializar o fascismo tão prontamente como o faz. Em um de seus livros recentes, Negri chega ao ponto de definir o fascismo como "todas as forças que se interpõem ao desejo e buscam bloquear sua emergência e expressão". Isso não é a política de um adolescente de 13 anos? "Você faz parte disso!" ele responde repentinamente. "Você ajuda a vender meus livros! Então você é parte disso. Você não pode negar sua responsabilidade."
Minha responsabilidade pelo que, exatamente? Negri abre a boca para responder e solta um chiado baixinho. Levo alguns segundos para me dar conta de que isso, na realidade, é uma risada. Não sei de que ele está rindo, mas me junto a ele, um pouco nervoso. Em pouco tempo estamos rindo abertamente, e me sinto perdido numa névoa de incerteza. "Mais vinho, por favor", diz ele, de repente. "Mais vinho."
Quando volto do bar, parece que já é hora de passarmos para seu livro "Império". Em 1983, Negri conseguiu fugir para Paris, onde bebeu na fonte de intelectuais franceses como Jacques Derrida. Quando retornou voluntariamente à prisão na Itália, em 1997, não deixou para trás o jargão acadêmico freqüentemente incompreensível da margem esquerda do Sena. "Império" foi saudado como um reformular do "Manifesto Comunista" para o século 21, mas é escrito com toda a paixão lúcida de um manual de computador mal traduzido. George Monbiot, um dos mais importantes intelectuais do movimento antiglobalização, admitiu: "Existe uma brincadeira que faço com meus amigos e que consiste em abrir esse livro em qualquer página, aleatoriamente, colocar o dedo sobre um parágrafo e ver se você consegue decifrar o que ele quer dizer". Ele acrescenta, generoso: "Negri tem algumas coisas importantes a dizer. Eu só desejaria que as dissesse com mais economia de palavras".
Entretanto, apesar do palavrório de leitura difícil, é possível identificar algumas continuidades com a filosofia anterior de Negri. Ele ainda se descreve como comunista e ainda convoca à revolução. Em alguns momentos dá a impressão de ter emergido de décadas criogênicas que teria passado congelado, como Austin Powers, ignorante do fato de que o mundo continuou a girar durante esse tempo. No entanto reconhece algumas transformações. Negri acha que hoje todos nós estamos vivendo numa condição chamada "Império". Não se trata do imperialismo dos EUA; é uma rede densa e autônoma de poder capitalista que passa por cima de qualquer Estado-nação. O "Império" exerce seu controle por meio do "biopoder", uma forma sutil de manipulação que contamina nossos cérebros e nos leva a internalizar os valores do capitalismo. Vivemos num mundo como o de "O Show de Truman", em que tudo virou falso, "subordinado ao capital", transformando-nos em joguetes sem vontade própria. Os cidadãos das democracias liberais se crêem livres quando, na verdade, vivemos em totalitárias "sociedades de controle", numa imensa "fábrica social".
Ou, pelo menos, é isso que acho que Negri está tentando me dizer. Ele acredita que o "Império" seja um triunfo, um avanço positivo na história. Assim como Marx saudou a vitória do capitalismo sobre o feudalismo, Negri diz que a esquerda deve saudar o "Império" porque este varre longe os velhos nacionalismos e cria um espaço para a oposição ao capitalismo organizar-se em nível global. A globalização rompeu a "jaula infernal" do Estado-nação, e nós deveríamos nos alegrar.
Pouco a pouco emerge um "Contra-Império", feito de desiludidos, que resistem ao "Império" -desde revolucionários sul-americanos até fundamentalistas islâmicos. Em breve eles vão se levantar e instituir a "cidadania global". Como faz com freqüência, Negri começa a elogiar "os combatentes comunistas e libertários das revoluções do século 20", como se não houvesse contradição entre comunismo e libertação.
Tento pensar em uma maneira educada de lhe recordar do fato de que cada revolução comunista do século 20 conduziu à tirania e às mortes em massa. E, também, em uma maneira simpática de dizer que o comunismo traiu os valores democráticos da esquerda. Não consigo. Acabo falando diretamente, de maneira estabanada. "Esses regimes comunistas estão esperando por uma revisão histórica. É possível que não sejam vistos de maneira tão negativa no próximo século", diz ele, como se isso fosse perfeitamente óbvio.
Negri recentemente descreveu a União Soviética como "uma sociedade atravessada por instâncias extremamente fortes de criatividade e liberdade", o que é mais do que ele jamais disse em favor de qualquer democracia. Ele chega a afirmar que a União Soviética caiu porque foi bem-sucedida demais. Chamo a atenção para isso, e ele responde: "Agora você está falando de memória. Quem controla a memória? Confrontados com o peso da memória, precisamos ser irracionais! A razão equivale ao cartesianismo eterno. A coisa mais bela é pensar "contra", é pensar "novo". A memória impede a revolta, a rejeição, a invenção, a revolução".
Ele se reclina para trás, como se tivesse rebatido de maneira brilhante qualquer crítica possível ao comunismo. Então será que está dizendo seriamente que não deveríamos nunca olhar para a história, que a esquerda deveria seguir adiante como se o comunismo fosse um grande sucesso, que não deveríamos repensar nossos valores? "Veja bem", diz Negri, "a verdade é uma ação coletiva empreendida por pessoas que fazem campanha juntas e se transformam". Isso não parece corresponder de maneira alguma à pergunta que lhe fiz, mas então me recordo da leitura de seu ensaio "Em louvor à ausência de memória". Quando o li, imaginei que não o tivesse compreendido corretamente, mas agora fica claro que Negri realmente acredita que é melhor não nos recordarmos de fatos inconvenientes, é melhor "conservar um ponto de vista subjetivo ... porque a memória embrutece o espírito. A memória é uma prisão". Se você tiver que escolher entre a história e o comunismo, abra mão da história.
Sinto que não consigo engolir mais nada. Nenhum dos problemas reais do mundo, desde a pobreza até a tirania, passando pelas transformações climáticas, é discutido na obra de Negri, exceto para afirmar que os pobres são "mais vivos", que os cidadãos das democracias liberais vivem sob a "tirania real"... Desisto. Não é apenas que este pregador do "Império" não tenha roupas -ele vive numa colônia nudista intelectual. Existem alguns escritores importantes antiglobalização, como Monbiot e Joseph Stiglitz. Mas Antonio Negri está tentando manter vivo um paciente, o marxismo, cujo coração parou de bater há muito tempo.
Então é para cá que o marxismo revolucionário vem para morrer. Ele foi reduzido a um obscuro jogo de salão para nostálgicos burgueses envelhecidos, jogado a poucos metros do Palácio de Buckingham por um velho terrorista que quer que percamos nossa memória.

Tradução de Clara Allain


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