São Paulo, domingo, 29 de novembro de 1998

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COMENTÁRIO
Desdobramentos do caso Monica Lewinsky influenciam áreas como política, jornalismo, costumes e feminismo
Escândalo modela EUA no fim do século

Reuters - 23.nov.98
Em visita a Guam, o presidente norte-americano saúda simpatizantes (no destaque, Lewinsky)


CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
em São Paulo

O escândalo Monica Lewinsky monopolizou a agenda nacional norte-americana em 1998, e implicações de seus desdobramentos vão influenciar a política, a Justiça, a cultura, a sociedade e o jornalismo dos EUA nos próximos anos.
A consequência mais imediata da extraordinária capacidade de Bill Clinton se manter com prestígio público foi o enfraquecimento da ala mais conservadora do partido de oposição, o Republicano.
O líder dessa facção e arquiinimigo de Clinton, Newt Gingrich, perdeu o cargo de presidente da Câmara dos Representantes (deputados) e o controle ideológico do partido devido à condução dada à malsucedida campanha da oposição nas eleições de novembro.
O grande beneficiário entre os republicanos é o governador do Texas, George W. Bush (filho do antecessor de Clinton), principal aspirante à candidatura presidencial do seu partido em 2000.
Bush é o mais expressivo republicano moderado. Foi reeleito no Texas com o apoio até de algumas das mais importantes lideranças do Partido Democrata. Ele é ídolo da forte comunidade hispânica que, em 1992, foi fator decisivo para a vitória de Clinton diante de seu pai na eleição presidencial.
O virtual encerramento do caso Lewinsky praticamente assegura a candidatura do vice-presidente Al Gore à Casa Branca em 2000.
A sobrevivência de Clinton estende uma espécie de cobertor de proteção a Gore em outras acusações, que o envolvem, de ilegalidades na atual administração, além de reforçar a liderança do presidente no seu próprio partido.
O líder democrata na Câmara, Richard Gephardt, principal ameaça à pretensão de Gore de ser o indicado pelo Partido Democrata para disputar a sucessão de Clinton, já deu indícios de que vai repensar sua decisão de desafiá-lo.
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Economia
A longo prazo, o desenlace do escândalo favorável a Clinton cristaliza a noção de que o desempenho econômico determina o comportamento eleitoral nos EUA.
O jargão "it"s the economy, stupid" (é a economia, estúpido), concebido pelo marqueteiro James Carville em 1992 e considerado, na época, uma expressão de rematado cinismo, agora é visto com naturalidade pela maioria das pessoas.
Segundo Carville, Clinton derrotaria Bush em 1992 por causa de um só motivo: o país estava em recessão e culpava o então presidente pela crise. Pouco importavam, dizia Carville, questões morais ou ideológicas; a campanha devia se centrar na promessa de que Clinton traria de volta o crescimento.
A tese foi reiterada durante o desenrolar do escândalo Lewinsky: enquanto a economia norte-americana permanecesse uma ilha de prosperidade num mundo em depressão, Clinton manteria sua popularidade. Foi o que ocorreu.
Outra consequência mais duradoura do incidente é a constatação de que as decisões políticas, e até as de Estado, serão tomadas cada vez mais com base em pesquisas de opinião pública. Todos os passos de Clinton foram guiados por elas.
Seu pior tropeço, o discurso televisionado de 16 de agosto em que admitiu a "relação não-apropriada", ocorreu por ele ter cedido ao seu impulso beligerante e ignorado parte das recomendações das pesquisas (Clinton deveria se mostrar humilde ao pedir perdão).
Gingrich se rebelou contra o império das pesquisas. Argumentou, dentro da lógica da primeira metade deste século, que líderes devem liderar, não seguir docilmente os desejos da maioria. Chegou a dizer que a democracia estaria em risco se as pesquisas substituíssem as eleições. Agora, amarga o exílio no seu próprio partido, quatro anos depois de o ter levado ao controle do Congresso com uma plataforma ousadamente conservadora.
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Teoria em xeque Não só a liderança política foi posta em xeque pelo escândalo Lewinsky. Os sociólogos, que há 50 anos vêm aceitando a "teoria dos líderes de opinião", têm de voltar à pesquisa para explicar o que ocorreu em 1998 nos EUA.
Os "líderes de opinião" tradicionais (religiosos, jornalistas, políticos, sindicalistas), em geral, pediram o impeachment ou a renúncia de Clinton ou, pelo menos, previram enormes dificuldades para a sua manutenção no poder. Mas os "liderados" pensaram diferente.
Entre os líderes, os dos movimentos religiosos conservadores estão em posição mais crítica. Depois de terem aumentado sua influência política durante 20 anos, a ponto de alguns deles (como Pat Robertson) terem até achado possível conquistar a Casa Branca, eles foram detidos pelo país quando tentavam sua mais audaciosa manobra, que era derrubar Clinton.
Mas não foi só na extrema direita que o episódio colocou lideranças em apuros. O movimento feminista saiu dele gravemente fraturado. Em 1991, as feministas lutaram com extremo vigor contra Clarence Thomas, juiz nomeado por George Bush para integrar a Suprema Corte, porque uma ex-assessora, Anita Hill, o acusara de ter feito referências e insinuações de caráter sexual na sua presença.
Os "pêlos pubianos na lata de Coca-Cola", que tanto escandalizaram o país em 1991, eram brincadeira de criança se comparados aos charutos e vestidos de agora, e as acusações de Hill eram muito menos substantivas do que as de Paula Jones ou Kenneth Starr.
Mas quase todas as líderes feministas ou se mantiveram quietas ou apoiaram Clinton em todo o escândalo. Elas agiram por pragmatismo: nenhum governo favoreceu tanto as causas feministas quanto o atual (defesa do direito de aborto, licença-maternidade, maior presença feminina no ministério e em funções públicas federais).
As bases do movimento, no entanto, se revoltaram com o duplo discurso de suas lideranças. O futuro do feminismo nos EUA vai ser redesenhado a partir de agora.
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Guia moral
Uma das características da "Presidência monárquica" existente nos EUA é de que o presidente é uma espécie de guia moral da nação, além de liderá-la politicamente. Clinton exerceu com gosto suas funções de "pastor-em-chefe".
O vexame a que foi exposto poderá alterar essa tradição. Os norte-americanos têm deixado claro que perderam o respeito por Clinton como pessoa, embora ainda o queiram como condutor político.
Essa diferenciação entre Clinton-homem e Clinton-presidente é uma das facetas do complexo fenômeno de separação entre o público e o privado que pode decorrer do escândalo Lewinsky nos EUA.
Nos últimos 30 anos, a "sociedade-espetáculo" se solidificou, com a crescente falta de diferenças aos olhos do público entre o o indivíduo e o personagem. Isso agora pode começar a ser questionado.
Do ponto de vista cultural, a grande derrotada é a tradição puritana norte-americana. O país foi formado por puritanos, que têm conseguido manter enorme influência sobre o modo coletivo de pensar ao longo da sua história.
Não deixa de ser simbólico que, no início do seu quarto século de vida, os Estados Unidos ignorem os princípios puritanos num momento-chave. O país, no século 21, será muito mais "mulato", com o crescimento notável de hispânicos e asiáticos no conjunto da população e o aumento de casamentos inter-raciais que já vem sendo constatado nas últimas três décadas.
Como subproduto dessa possível derrocada do puritanismo, é bastante provável que o sexo consensual entre adultos venha a ter aceitação social muito mais generalizada do que até agora no país.
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Adultério
Por isso, as leis estaduais de proibição do adultério, além de letras mortas (que já são, quase todas), poderão até ser revogadas. Será muito difícil punir alguém por adultério no Distrito de Colúmbia (Distrito Federal), onde ainda é crime, depois de o presidente da República o ter praticado impune.
Da mesma forma, é quase inevitável a rediscussão dos códigos legais militares, que também proíbem o adultério. Ao contrário da civil, a Justiça militar tem sido severa na aplicação das penas previstas para essa infração. Mas terá menores condições políticas de manter essa linha após o comandante-chefe das Forças Armadas admitir ter tido relação "não-apropriada" fora do casamento.
Num país em que o sistema jurídico se baseia em jurisprudência, o futuro de todas as ações por assédio sexual está em aberto depois do caso Paula Jones. É consensual entre advogados nos Estados Unidos que ela possuía mais elementos contra Clinton do que muitas das acusadoras de superiores hierárquicos que foram bem-sucedidas na Justiça.
É previsível que ocorra um refluxo no número de processos por assédio sexual, que vinha crescendo muito nesta década, já que o padrão exigido para a condenação se elevou de nível com o fracasso da denúncia de Paula Jones contra Bill Clinton.
Na área jurídica, o mais importante desdobramento do escândalo são os efeitos que terá sobre a instituição do promotor independente. A função foi criada depois do caso Watergate, que resultou na renúncia de Richard Nixon em 1974, e era considerada um instrumento de defesa da democracia.
No entanto, a impopularidade de Kenneth Starr faz com que grande parte da população ache que o poder do promotor independente é grande demais e que sua atuação pode ser nociva à sociedade.
O Congresso tem de resolver, em dois anos, se prorroga ou não a vigência da lei que criou o promotor independente. Se essa decisão ocorresse agora, é provável que, na base do "governo via pesquisas", ele decidisse pela sua abolição.
Com ou sem promotor independente, os sucessores de Clinton deverão ter mais sossego do que ele, em termos legais. As dezenas de acusações feitas contra a atual administração resultaram em muito pouco. Depois de Watergate, tinha-se a impressão que derrubar um presidente podia ser fácil. Clinton mostra que o oposto é (como sempre fora) verdade. Futuros Starrs pensarão melhor antes de entrarem em novas cruzadas.
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Jornalismo
O jornalismo é outra atividade que vai sentir por muito tempo as consequências do escândalo Lewinsky. Ao contrário do que ocorrera em Watergate, os jornalistas foram encarados como vilões pelo público nesse episódio atual.
A instituição jornalística mais afetada é o "off the records" (informação veiculada sem a identificação da fonte). Em Watergate, o uso desse recurso fora aplaudido; em Lewinsky, condenado (embora quase todas as informações "off" no caso tenham se confirmado).
A questão do respeito à vida privada da pessoa pública, que já vinha sendo debatida havia pelo menos dez anos (desde o caso Gary Hart), vai ser examinada com maior ênfase a partir de agora.
Na mesma linha, o conceito de "jornalismo-espetáculo", consagrado pelas revistas televisivas, também vai passar por uma revisão em função do descontentamento do público nesse caso.
Finalmente, o poder de influência dos editoriais também foi posto em dúvida pelo episódio Lewinsky. Cerca de 200 jornais diários de prestígio (entre eles, "USA Today") e dezenas de semanários (como "The Economist") pediram a renúncia de Clinton; outros chegaram muito perto disso ("The New York Times" e "The Washington Post") e o jornal de maior circulação do país, "The Wall Street Journal", se engajou em campanha editorial pelo impeachment. Os leitores não se abalaram.
É claro que é preciso dar um desconto à hipocrisia coletiva. As pesquisas demonstraram insatisfação com a cobertura do escândalo, mas os índices de audiência e de circulação dos veículos que mais se dedicaram a ela cresceram demais.
Da mesma forma, os resultados das eleições favoreceram Bill Clinton, mas cerca de 60% dos que tinham o direito de votar se abstiveram.
Nos final dos anos 60, os Estados Unidos pareciam estar dando uma grande guinada à esquerda. Richard Nixon acreditou que a "maioria silenciosa" poderia elegê-lo presidente, apesar de muitas evidências em contrário. Nixon estava certo.
Agora, o país parece caminhar para um período mais liberal em termos de moralidade pública. Mas a maioria continua silenciosa e poderá, de novo, surpreender quando resolver se manifestar.



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