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GUERRA NO ORIENTE MÉDIO
Em Chatila, inimigo une palestinos e libaneses
Campo de refugiados perto de Beirute foi
palco de um dos mais célebres massacres
Pobreza e discriminação
pela sociedade libanesa
marcam vida de palestinos
que permaneceram no local
após o episódio de 1982
MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL A CHATILA (LÍBANO)
Estas vielas estreitas e insalubres, que poderiam fazer parte do cenário degradado de
uma favela brasileira, guardam
na memória um dos mais infames episódios da guerra civil libanesa (1975-1990). Crianças
jogam futebol alegremente, um
vívido comércio de rua fervilha
de consumidores em busca de
frutas e verduras, e as muitas
bandeiras do Brasil lembram a
paixão local por nosso futebol.
Tudo isso é insuficiente para
desviar do pensamento as cenas que tornaram o campo de
refugiados palestino de Chatila,
nos subúrbios de Beirute, um
símbolo de barbárie que ainda
hoje, 24 anos depois, ainda assombra a consciência mundial.
A poucos quilômetros dali,
também no sul do Beirute, o
novo capítulo de uma guerra
que deu a ilusão de ter terminado há 16 anos tem uma de suas
páginas mais violentas. Nos
bairros xiitas que abrigam o
quartel-general do Hizbollah,
bombardeados diariamente,
Israel tenta decapitar uma organização que surgiu em 1982,
mesmo ano do massacre de Sabra e Chatila. De suas casas precárias, refugiados palestinos,
ouvem de perto disparos e vibram a cada nova morte israelense nos ataques do Hizbollah.
Nas paredes sujas de Chatila,
as imagens do líder do grupo libanês, Hassan Nasrallah, convivem com as de ícones da luta
palestina, como Iasser Arafat e
Ahmed Yassin, fundador do
Hamas. Ambos estão mortos, e
a causa que defenderam cada
vez mais distante de se transformar na sonhada independência palestina. "Estamos
abandonados, mais uma vez",
diz o palestino Mounir Maarouf, coordenador do centro de
saúde da ONU em Chatila. "Enquanto se mobiliza para achar
uma solução para a crise no Líbano, o mundo volta a se esquecer de nós. Mas não há saída:
nós somos o centro do conflito."
Maarouf interrompe seu lamento para corrigir um erro
comum: apesar de o episódio
estar tatuado na memória
mundial como o massacre de
Sabra e Chatila, só o segundo é
um campo de refugiados. Sabra
é uma aglomeração habitacional que fica ao lado, cujos habitantes, embora em escala menor, também foram vítimas do
banho de sangue.
Sem números
Até hoje não é possível especificar o número exato de mortos no massacre, mas, os relatos
apontam entre mil e 3.000. O
que se sabe é que entre 16 e 17
de setembro de 1982, milícias
falangistas cristãs aliadas de Israel fizeram uma carnificina no
local, sem poupar mulheres
nem crianças. O britânico Robert Fisk, um dos primeiros
jornalistas a chegar ao local,
descreveu assim o que viu, em
seu clássico livro sobre a guerra
civil, "Pity the Nation" (piedade da nação): "Parei de contar
os corpos quando o número
chegou a cem. Em todo beco
havia corpos -mulheres, homens jovens, bebês e avôs-
deitados lado a lado, em terrível
e indolente profusão, onde eles
haviam sido esfaqueados ou
metralhados até a morte. Cada
corredor através das ruínas
produzia mais corpos."
Poucos sobreviventes ficaram em Sabra e Chatila, diz
Maarouf. Quem pôde, mudou-se para outro país, onde recebeu direitos que não possuíam
no Líbano. Aqui, eles continuam sendo discriminados,
odiados, apontados como os
principais culpados pela brutal
guerra que destruiu o país. "Há
alguns dias o governo libanês
fez uma convocação desesperada, tentando arregimentar funcionários para seu serviço de
limpeza pública, para substituir os estrangeiros que fugiram. Centenas de palestinos se
apresentaram, mas nenhum foi
aceito. Nem para recolher o lixo
nós servimos", diz.
Segundo a UNRWA, a agência de refugiados palestinos da
ONU, há 405.425 palestinos registrados no Líbano, espalhados em 13 campos. Em Chatila
estão 12.235. São números referentes somente aos refugiados
da primeira guerra árabe-israelense, em 1948. Nas duas guerras posteriores, em 1967 e 1973,
outros 15 mil chegaram ao país,
calcula a diretora de informação da agência, Hoda Elturk.
"Até hoje eles não têm direito
algum, continuam com o status
de refugiados. O Estado libanês
lhes nega o trabalho em 72 profissões", diz Hoda. "Eles vivem
num ambiente extremamente
hostil. Uma de nossas principais tarefas é conseguir-lhes
trabalho. Muitos vivem em casas minúsculas, com até dez
pessoas, e têm dificuldade para
pagar o aluguel de US$ 100."
A hostilidade é esquecida
quando o assunto é o Hizbollah
e o ódio a Israel. "Finalmente
surgiu alguém para desafiar e
atacar Israel", diz Mohamed
Hassanein, dono de uma oficina de máquinas de lavar em
Chatila, cujos pais foram obrigados a deixar a cidade de Haifa
em 1948 -a mesma que, há
duas semanas, vem sendo atingida pelos foguetes do Hizbollah. Muitos de seus parentes
ainda vivem lá. Mas isso não arrefece seu entusiasmo.
"Fico preocupado com a minha família em Haifa, mas a alegria de ver Israel sendo atacado
é maior", diz Mohamed, 29, que
não abandona o sonho de "retornar" à pátria em que nunca
esteve. "Nem que seja a última
coisa que eu faça."
Embora não participem das
eleições palestinas, os refugiados de Chatila vivem a mesma
dinâmica política de Gaza e
Cisjordânia e as mesmas divisões. Todas as facções estão
aqui representadas. Uma delas
é a Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), cujo
escritório fica no segundo andar de um prédio decrépito, cujas escadarias esburacadas e
mal iluminadas são um convite
a um tombo. O chefe da FPLP
em Chatila, Suleiman Abdel
Hadi, vê um paralelo entre a
violência em Gaza e no Líbano.
"Israel diz que vai destruir o
Hizbollah e o Hamas, mas só
conseguirá paz por pouco tempo", diz ele, que não vê no plano
de retirada unilateral israelense dos territórios palestinos
idealizado por Ariel Sharon e
herdado pelo atual premiê,
Ehud Olmert, nem um esboço
de solução. "Nenhum gesto
unilateral pode garantir uma
paz duradoura. Eles podem até
ganhar uma batalha. Mas a
guerra ainda será longa."
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