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ANÁLISE
Constituição hondurenha não justifica o golpe
PEDRO ESTEVAM SERRANO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O golpe em Honduras, que
destituiu do exercício de seu
mandato pelas armas um presidente eleito pelo voto, tem sido
duramente repudiado pela comunidade internacional.
Os golpistas usaram como
justificativa o apoio da Corte
Suprema e do Legislativo à deposição de Manuel Zelaya, fundando-se no artigo 374 da
Constituição, que torna inválido qualquer plebiscito ou referendo que possibilite a renovação do mandato presidencial.
A partir dessa justificativa,
alguns articulistas têm adotado
como verdade uma suposta juridicidade do golpe, que teria,
assim, um caráter universal de
defesa da Constituição.
Tal conclusão, contudo, não
resiste a uma leitura minimamente sistemática do texto
constitucional de Honduras. O
artigo 374 da Carta Magna hondurenha efetivamente impossibilita reforma constitucional
que altere o mandato presidencial ou possibilite a reeleição do
titular do respectivo mandato.
Em verdade, tal dispositivo é
clausula pétrea da Carta.
A clausula torna inválida
qualquer alteração constitucional com tal objeto, mas não tem
por si o condão de gerar a perda
de mandato do presidente e
muito menos dispensa o devido
processo legal para tal sanção.
O artigo 5º da Constituição
impossibilita referendos ou
plebiscitos que tenham por objeto a recondução do presidente ao mesmo mandato, sendo
que o artigo 4º considera como
obrigatória a alternância do
exercício da Presidência, tornando crime de traição contra a
pátria sua não observância.
Ora, a simples proposta de
reeleição por um mandato do
presidente da República não
implica atentado contra o princípio da alternância, apenas altera o lapso de tempo pelo qual
se dará tal alternância.
O único dispositivo no texto
que poderia servir de fundamento à possível perda do
mandato do presidente seria,
provavelmente, a alínea 5 do
artigo 42 da Carta, que torna
passível da perda dos direitos
de cidadania, entendida como a
capacidade de votar e ser votado, a pessoa que "incitar, promover ou apoiar o continuísmo
ou a reeleição do presidente".
Primeiro, a afirmação que a
proposta de reforma constitucional de Zelaya implica inobservância de tal dispositivo merece algum reparo. O dispositivo pretende evitar o apoio e o
incitamento ao continuísmo do
detentor do mandato de presidente na época dos fatos. Zelaya tem afirmado que sua proposta é de possibilitar a reeleição de futuros presidentes, e
não dele próprio. Assim, ele
não teria apoiado, promovido
ou incitado o continuísmo do
atual presidente -ele próprio.
E, de qualquer forma, a alínea
6 do artigo 42 e diversos outros
dispositivos da Constituição
hondurenha determinam que a
perda da cidadania deve ser
aplicada em processo judicial
contencioso e com direito a
ampla defesa, observado o devido processo legal, o que não
ocorreu de modo algum no procedimento adotado pelos golpistas e seus apoiadores.
Ainda que se considerasse
que Zelaya cometeu crime ao
ter formulado uma proposta de
consulta popular contrariamente à Constituição, que o devido processo legal seria desnecessário por não previsão de
procedimento específico de
cassação de seu mandato na
Carta hondurenha, que a Corte
maior daquele país sancionou a
decisão golpista de detê-lo, a
forma de execução dessa decisão foi integralmente atentatória a dispositivos expressos da
Constituição de Honduras.
O artigo 102 estabelece expressamente que nenhum hondurenho pode ser expatriado
nem entregue pelas autoridades a um Estado estrangeiro.
Ter detido Zelaya ainda de pijamas e tê-lo posto para fora do
país de imediato atenta gravemente contra tal dispositivo.
A conduta golpista tratou-se
de um cipoal de inconstitucionalidades, ao contrário do que
postularam articulistas apressados, mais animados pela simpatia ao golpe de direita que por
qualquer avaliação mais precisa e sistemática da Constituição hondurenha. Os atos praticados formam um atentado
grave a diversos dispositivos da
Carta Magna daquele país.
Em verdade, a conduta dos
golpistas e dos que os apoiaram
é que, clara e cristalinamente,
constitui crime conforme o disposto no artigo 2º da Carta
hondurenha, que tipifica como
delito de traição da pátria a
usurpação da soberania popular e dos poderes constituídos.
Podem querer alegar que,
mesmo inconstitucional, toda a
conduta golpista foi sustentada
pela Corte maior. À Corte constitucional cabe o papel de interpretar a Constituição e não de
usurpá-la às abertas. Sua autoridade é exercida não em nome
próprio, mas como intérprete
da Constituição, cabendo-lhe
defendê-la, não destruí-la.
Ao agir como agiu, a Corte
hondurenha realizou o que no
âmbito jurídico tem-se como
"poder constituinte originário", ou seja, uma conduta política e não jurídica, originária,
de fundação de uma nova ordem constitucional. Uma ordem imposta, de polícia e não
democrática. Na ciência política, o mesmo fenômeno tem outro nome: golpe de Estado.
PEDRO ESTEVAM SERRANO, mestre e doutor
em direito do Estado, é professor de direito
constitucional da PUC-SP
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