São Paulo, segunda-feira, 31 de janeiro de 2005

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ELEIÇÕES ARMADAS

60% dos eleitores registrados foram às urnas apesar do terror, que matou 35; Bush festeja

Iraque supera o medo e vota em massa em meio a atentados

Toby Melville/Reuters
Mulheres iraquianas fazem fila em posto de votação em Basra, no sul do Iraque


KAREN MARÓN
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM BAGDÁ

Em um momento histórico que surpreendeu o mundo, milhares de iraquianos superaram o medo e participaram em massa da primeira eleição no Iraque em meio século, mobilizados pela esperança. Atentados em diversos pontos do país deixaram ao menos 35 mortos, mas a ameaça de insurgentes e terroristas de promover um "banho de sangue" provou-se superestimada.
Em clima de festa, cerca de 60% dos eleitores registrados foram às urnas, conforme dados preliminares da comissão eleitoral. Livres da opressão imposta pelo regime de Saddam Hussein e na esperança de um futuro autônomo, curdos também fizeram fila para votar -sua participação foi de 90%. Nas áreas sunitas, em que imperava a ordem de boicote emitida pelos altos clérigos, muitas seções ficaram vazias, mas o comparecimento ficou acima do esperado.
Carlos Valenzuela, chefe da equipe da ONU que preparou as eleições, manifestou otimismo, mas também cautela, com os números iniciais. "Se os resultados forem confirmados, e a única razão para ser cauteloso for a falta de um quadro completo, as notícias são muito boas. Mas o desafio será que os resultados sejam aceitos pela minoria sunita", afirmou.

Voto pela primeira vez
Zahra parecia radiante sob sua "abaya". Um sorriso imenso se desenhava em seu rosto tatuado com henna azul. Há muitos anos que sua face está marcada, como suas mãos e braços. "Eu era jovem e o fazíamos para nos embelezar", disse. Agora ela ostenta uma nova marca, em seu dedo indicador, de cor azul brilhante e impresso com tinta indelével. Aos 65 anos, Zahra Azur votou pela primeira vez e não esconde a alegria.
"Há muito tempo que estamos nos preparando para isso. É um dia especial para todos os iraquianos", diz na porta da escola primária de Al Rasedem, um dos centros de votação localizados no coração do bastião xiita de Sadr City. "Não temos medo. Alá está conosco e esta é uma nova oportunidade para uma vida melhor."
Os milhares que compareceram às urnas têm claro que essas eleições não são perfeitas nem livres e democráticas. Também sabem que elas ocorrem após uma modificação profunda das leis iraquianas por parte do ocupante americano, violando as Convenções de Genebra e de Haia. Conhecem os maus-tratos, os assassinatos indiscriminados, os sofrimentos cotidianos. Estão em carne viva os atuais, e os passados são chagas abertas. Por isso os que votaram apostaram na esperança, na retirada dos ocupantes, na melhora da qualidade de vida e no respeito pela dignidade humana por que anseiam talvez sem conhecer.
"Quero ver sair o sol outra vez em meu país", diz Nadija, numa cadeira de rodas. Essa mulher de 84 anos está doente, não pode caminhar, mas se fez presente apesar de todos os riscos, junto com seus três filhos, na escola de Nadamiya, no bairro de Sadoum. "É a primeira vez que voto. Já cumpri meu dever e meu sonho", afirma, com lágrimas nos olhos.
O local, um dos mais visitados pela imprensa, estava cheio de gente com ânimo de participar. Era o caso do cristão Raed, 40, que chegou às 7h30, "e sem tomar o café da manhã", diz, sorrindo.
"Não nos esquecemos de Halabja nem como nos expulsaram de nossas terras. Por isso queremos fechar esse período neste dia", afirma Nausat, um curdo sunita, em alusão ao massacre de 5.000 curdos comandado por Saddam, na localidade próxima à fronteira com o Irã. "Estamos esperançosos com o processo."
Em três horas, a partir da abertura das urnas às 7h, participaram nesta escola um terço dos 3.000 eleitores registrados. O cordão de segurança colocado desde a sexta-feira para proteger os lugares de votação incluía o corte das ruas e avenidas com veículos de combate Humvess, policiais e militares iraquianos e forças multinacionais, enquanto os helicópteros Apache e Black Hawk faziam vôos rasantes sobre os telhados.
"Medo?", pergunta Abbas, surpreso. "Sim, claro que temos medo. Mas decidimos ter um futuro, por isso viemos votar", diz, convencido, o xiita de 48 anos.
"Viemos votar porque cremos que um novo Iraque é possível", diz Bashar, 31, um tradutor sunita que votou na lista que encabeça o premiê interino, Iyad Allawi, um xiita laico relacionado aos serviços de inteligência ocidentais. "Talvez não seja a melhor opção, mas é uma possibilidade para eleger algo por nossos próprios meios, e queremos aproveitá-la."
Famílias inteiras percorreram longas quadras entre suas casas e as escolas, passando por estritas medidas de segurança. O processo de votação consistia em mostrar o documento de identidade, marcar as cédulas para introduzir nas urnas e pintar o dedo.
Essa é a prova de ter participado da eleição, mas também o sinal para os insurgentes. Algumas pessoas temem ser identificadas como votantes e depois ser assassinados. "Existe essa possibilidade. Mas já está feito. Hoje também houve atentados e da mesma forma comparecemos", disse Bashar, antes que o oitavo homem-bomba se explodisse, fazendo passar de 30 o número de mortos até o término da votação.
Do outro lado da cidade, no bairro multiétnico de Nova Bagdá, desde a manhã havia algazarra. No hotel Flowers Landa, eram constantes as chamadas telefônicas entre os funcionários cristãos e suas famílias. "Toda a minha família votou", disse o católico Damand. "Que pena que não posso ir porque estou trabalhando, mas isso é muito bom para todos."


Com agências internacionais

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