São Paulo, segunda-feira, 31 de julho de 2006

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Protestos eclodem pelos países da região; revolta toma os libaneses

DO ENVIADO ESPECIAL A BEIRUTE

Massacre. Choque. Revolta. Essas foram as palavras mais ouvidas ao longo dia nas TVs libanesas, que dedicaram praticamente toda a sua programação à cobertura da ofensiva israelense, a análises e a reações. Os esforços das equipes de resgate eram mostrados ao vivo, enquanto os gritos desesperados de mulheres que tinham parentes entre as vítimas eram ouvidos ao fundo. Pequenos grupos se juntavam em restaurantes e cafés de Beirute, para acompanhar a contagem de mortos mais recente. Dos territórios palestinos ao Kuait, do Egito à Tunísia, chegavam notícias de que a revolta se espalhava pelo mundo árabe e ameaçava incendiar de vez um conflito que já radicalizara a região.
No protesto mais grave ocorrido ontem em Beirute, centenas de pessoas com bandeiras do Hizbollah e de um outro grupo xiita, o Amal, invadiram o representação da ONU, quebrando o que viam pela frente. Houve protestos também em frente à Embaixada dos EUA, nas cercanias de Beirute.
Alguns canais de TV dividiam a tela, mostrando de um lado cenas do ataque de ontem, e, do outro, do ataque israelense em 1996 a um abrigo de refugiados da ONU na mesma Qana, quando 106 civis morreram.
O ataque de dez anos atrás virou um símbolo nacional de indignação e solidariedade ao Hizbollah no país, onde muitos o chamam de "holocausto libanês". Uma emissora de rádio chamou o novo bombardeio de "Qana 2".
Mesmo aqueles que se opõem ao Hizbollah não puderam evitar o sentimento de indignação e a constatação de que o episódio é altamente inflamável politicamente. "O resultado mais imediato será unir o povo libanês e aumentar o sentimento anti-Israel em todo o mundo árabe", disse o brasileiro Carlos Eddé, secretário-geral de um tradicional partido cristão libanês. "Esse ataque tem todos os sinais de uma limpeza étnica. E não adianta Israel dizer que mandou a população deixar a cidade, pois continua sendo limpeza étnica."

Refugiados
Numa escola secundária do bairro de Bir Hassan, oeste de Beirute, que virou abrigo de moradores do sul deslocados pela ofensiva israelense, três famílias de Qana dividem uma sala de aula. Sentada numa pilha de colchonetes, Afra Shalhoum 43, conta que chegou à escola há cinco dias trazendo os três filhos, depois de ver sua casa ser totalmente destruída por um míssil. "Eu estava dentro de casa. Foi muita sorte a parede não cair em cima dos meus filhos", diz Afra, que morava a poucos metros do prédio atacado ontem por Israel, onde morreram dois de seus primos.
Afra, com a tradicional veste muçulmana, se revolta quando ouve a afirmação do Exército israelense de que pediu aos moradores que deixassem a cidade ou a de que o Hizbollah usa civis como "escudos humanos". "É mentira! Eles só dizem isso para ter uma desculpa e poder matar mais xiitas", levanta a voz, enquanto jura fidelidade ao líder do Hizbollah, Hassan Nasrallah. "Se eles [Israel] matarem dez, nascerão cem para lutar. E nós faremos tudo o que o xeque Nasrallah disser para defender nossa terra."
Enquanto o tom predominante na mídia libanesa era de repúdio ao "massacre" israelense, em raros momentos uma pequena brecha para o ceticismo se abria. Num deles, um apresentador da TV LBC, de proprietários cristão e que mantém uma linha de oposição ao Hizbollah, levantou dúvidas sobre as circunstâncias com que o ataque veio a público. Segundo ele, apesar de o bombardeio ter ocorrido à 1h da manhã, só por volta de 7h as equipes de reportagem tiveram permissão para entrar no prédio.
A demora, especulou o jornalista, teria ocorrido para que os membros do Hizbollah que estavam no prédio pudessem retirar qualquer vestígio de armamentos que estariam guardando no local. Israel afirma que o grupo xiita usara a área atacada para disparar foguetes contra o seu território, o que originou o contra-ataque.
Em meio ao espanto, houve quem tentasse manter a esperança, ainda que sombria, no fim da violência. "Em 1996 foi o massacre de Qana que levou ao cessar-fogo", lembrou um repórter da LBC, em referência ao acordo que pês fim à ofensiva israelense conhecida como Vinhas da Ira, em resposta aos ataques de Hizbollah. "Quem sabe esse novo massacre também abra os olhos do mundo e pare a agressão israelense?"

Choque regional
O ataque em Qana provocou uma reação de choque em cadeia pela região. Na faixa de Gaza, onde Israel também vem efetuando ataques em retaliação ao seqüestro de um soldado, centenas de pessoas protestaram com cartazes que chamavam o premiê de Israel e o presidente dos EUA de "terroristas". As principais facções armadas palestinas, que já receberam apoio logístico do Hizbollah, exortaram seus militantes a fazer ataques contra Israel para vingar as mortes de Qana.
"Todas as opções estão abertas, inclusive ataques profundos na entidade sionista", disse Mushir al Masri, deputado do Hamas, grupo que controla o governo palestino, numa indicação de que os ataques terroristas poderão ser retomados. Nas cidades de Belém e Tulkarem, na Cisjordânia, bandeiras de Israel foram queimadas. "Hizbollah é nosso herói, ataquem Tel Aviv", gritavam os participantes.
Na Jordânia e no Egito, os dois únicos países árabes que mantêm relações diplomáticas com Israel, com acordos de paz, a indignação ameaça se voltar contra os governos. Oito deputados independentes e de oposição egípcios pediram à Liga Árabe que force as autoridades do Cairo e de Amã a romper relações com Israel.
O rei da Jordânia, Abdullah II, foi o primeiro líder árabe a repudiar o "horrendo massacre". "Esse massacre representa um ato criminoso covarde e uma flagrante violação de todas as convenções internacionais", disse o rei em telefonema ao premiê libanês, Fouad Siniora.
O secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa, engrossou o coro. "A Liga Árabe pede uma investigação internacional sobre esse massacre e outros crimes de guerra israelenses cometidos no Líbano, sobretudo os que afetaram civis", disse o grupo em comunicado oficial. (MARCELO NINIO)


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