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Planalto e Itamaraty preferem vitória de Bush
ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA
ANDRÉ SOLIANI
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
O GOVERNO LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA é considerado de centro-esquerda e mais afinado com as causas politicamente corretas do Partido Democrata dos Estados Unidos, como nas áreas ambiental e de direitos
humanos. Logo apóia a candidatura de John F. Kerry nas
eleições de 2 de outubro, certo? Mais ou menos.
Ideologicamente, o governo
brasileiro pode até preferir Kerry,
mas, pragmaticamente, o Palácio
do Planalto e a cúpula do Itamaraty preferem que o republicano
George W. Bush continue no poder e promova poucas mudanças
na atual equipe. Conforme a Folha apurou, os motivos são de ordem interna e também externa.
Apesar de todas as críticas à
atuação internacional de Bush, os
governistas se dizem "confortáveis" com o republicanos. Acreditam que, mesmo com todas as diferenças de valores, o governo
Bush reconheceu o papel de liderança do Brasil na América Latina
e vê o país como um aliado para
manter a estabilidade na região.
Sem antagonismo
Do ponto de vista da política interna brasileira, Lula, o chanceler
Celso Amorim e boa parte dos
ministros dizem que "a coisa engrenou" e os dois governos se entendem bem nas questões pontuais de interesse mútuo.
No jantar que ofereceu no Itamaraty ao secretário de Estado
dos EUA, Colin Powell, no início
de outubro, Amorim fez um brinde cheio de alegorias, defendendo
que "divergências não significam
antagonismo". Powell não apenas
concordou como usou praticamente os mesmos termos.
Ou seja, apesar das diferenças e
resistências de lado a lado, há confluência em questões delicadas e
acertos objetivos em várias áreas,
como agricultura, saúde e defesa.
A própria regulamentação da
"lei do abate", que permite ao governo brasileiro derrubar aviões
suspeitos nas fronteiras, foi negociada com a equipe de Bush. Nos
governos de Fernando Henrique
Cardoso (PSDB) e Bill Clinton
(democrata), as conversas não
evoluíram.
Do ponto de vista externo, o
pragmatismo é mais ostensivo
ainda, porque a simpatia pela reeleição de Bush não é justificada
pelas suas qualidades, mas, ao
contrário, pelos seus defeitos.
Bush é considerado "um desastre" para a imagem dos EUA, que
nunca esteve tão em baixa no
mundo como agora, depois da invasão do Iraque sob pretextos irreais, à revelia da ONU e sem um
plano consistente para devolver o
país aos iraquianos. Estudos acadêmicos dizem que 100 mil pessoas já morreram na guerra.
O governo do PT acha que, num
mundo unipolar, não seria conveniente a única potência ter um
presidente forte, carismático e
com liderança internacional efetiva. Uma grande potência e um
presidente medíocre resultam numa combinação menos agressiva
ao equilíbrio mundial.
A posição comodista em relação
à reeleição de Bush não significa
que o governo brasileiro seja contra Kerry, pelo contrário. Mas
nem ministros nem diplomatas
conseguem ver com clareza qual
seria a diferença entre os dois capaz de estimular o desejo de mudança, além da já batida contraposição entre o protecionismo
dos democratas e o liberalismo
dos republicanos, que favoreceria
comercialmente o Brasil.
O diálogo sobre questões ambientais, sobre organismos internacionais fortes e mesmo sobre
Cuba seria mais fácil com Kerry,
mas ainda não estão claras suas
posições sobre temas considerados fundamentais para o Brasil,
como Protocolo de Kyoto, Haiti e
Venezuela.
Kerry, como Bush, também não
gosta do presidente venezuelano
Hugo Chávez, considerado o
ponta-de-lança de uma nova esquerda no continente, mas ambos
acatam o resultado do plebiscito
que o manteve no poder.
No início do governo Lula,
Amorim decidiu criar o Grupo de
Amigos da Venezuela para tentar
dar mais estabilidade ao vizinho.
O governo Bush resistiu, mas por
fim aderiu. O Itamaraty considera
que o episódio da Venezuela serviu para demonstrar aos EUA a
capacidade de o Brasil atuar como
uma força estabilizadora na América Latina. E não tem claro como
Kerry lidaria com isso.
Bush não só estimulou como é
um dos principais apoios do Brasil na sua mais arriscada aposta
no cenário internacional: a liderança das forças de paz da ONU
no Haiti. Além demonstrar a liderança que o país quer assumir na
região, sua participação proeminente no Haiti é uma espécie de
preço a pagar para conseguir um
cadeira permanente no Conselho
de Segurança das Nações Unidas.
Nem Bush nem Kerry se comprometem com a pretensão.
A preocupação de Kerry com o
multilateralismo também se reflete nos discursos sobre ambiente e
sobre o Tribunal Penal Internacional (para julgar crimes de
guerra). Nos dois casos, Kerry critica as decisões de Bush, que não
levou adiante as negociações para
a implementação do Protocolo de
Kyoto, que prevê a redução da
emissão de gás carbônico na atmosfera, e não aceitou que a corte
internacional julgasse cidadãos
americanos. Apesar das críticas,
não está claro se Kerry assinaria
os dois acordos.
Livre comércio
Quanto ao comércio, Bush passa mais tranqüilidade. Kerry prometeu, se ganhar, suspender todas as negociações por um período de 120 dias para avaliá-las. Ele
insiste em incluir direitos trabalhistas e metas ambientais nos
seus acordos de livre comércio,
seguindo o receituário democrata. O Itamaraty teme mais protecionismo interno, prejudicando
as exportações brasileiras.
O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, acha que a retomada da Alca (Área de Livre Comércio das Américas) seria mais
rápida com a continuidade de
Bush, sobretudo se o atual representante de Comércio, Robert
Zoellick, ficar no cargo.
Após essa ressalva, Rodrigues
diz que, para a Alca, mais importante do que quem será o futuro
presidente dos EUA são a composição do Congresso americano e a
própria dinâmica das negociações entre o Mercosul e a União
Européia. Segundo ele, o sucesso
das negociações com europeus
aumentará a ânsia dos Estados
Unidos em fechar um acordo que
envolva o Brasil.
Quando o assunto é América do
Sul, o comum entre os dois candidatos e seus partidos é a falta de
prioridade que eles dão à região.
Além disso, qualquer que seja o
presidente, ele tem e terá pouca
margem de manobra numa série
de assuntos. Quem dá o rumo e
garante as decisões é o Congresso
americano. Que age por pressão
da sociedade e do poderosíssimo
capital privado do país.
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