São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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Planalto e Itamaraty preferem vitória de Bush

ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA

ANDRÉ SOLIANI
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O GOVERNO LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA é considerado de centro-esquerda e mais afinado com as causas politicamente corretas do Partido Democrata dos Estados Unidos, como nas áreas ambiental e de direitos humanos. Logo apóia a candidatura de John F. Kerry nas eleições de 2 de outubro, certo? Mais ou menos.

Ideologicamente, o governo brasileiro pode até preferir Kerry, mas, pragmaticamente, o Palácio do Planalto e a cúpula do Itamaraty preferem que o republicano George W. Bush continue no poder e promova poucas mudanças na atual equipe. Conforme a Folha apurou, os motivos são de ordem interna e também externa.
Apesar de todas as críticas à atuação internacional de Bush, os governistas se dizem "confortáveis" com o republicanos. Acreditam que, mesmo com todas as diferenças de valores, o governo Bush reconheceu o papel de liderança do Brasil na América Latina e vê o país como um aliado para manter a estabilidade na região.

Sem antagonismo
Do ponto de vista da política interna brasileira, Lula, o chanceler Celso Amorim e boa parte dos ministros dizem que "a coisa engrenou" e os dois governos se entendem bem nas questões pontuais de interesse mútuo.
No jantar que ofereceu no Itamaraty ao secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, no início de outubro, Amorim fez um brinde cheio de alegorias, defendendo que "divergências não significam antagonismo". Powell não apenas concordou como usou praticamente os mesmos termos.
Ou seja, apesar das diferenças e resistências de lado a lado, há confluência em questões delicadas e acertos objetivos em várias áreas, como agricultura, saúde e defesa.
A própria regulamentação da "lei do abate", que permite ao governo brasileiro derrubar aviões suspeitos nas fronteiras, foi negociada com a equipe de Bush. Nos governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Bill Clinton (democrata), as conversas não evoluíram.
Do ponto de vista externo, o pragmatismo é mais ostensivo ainda, porque a simpatia pela reeleição de Bush não é justificada pelas suas qualidades, mas, ao contrário, pelos seus defeitos.
Bush é considerado "um desastre" para a imagem dos EUA, que nunca esteve tão em baixa no mundo como agora, depois da invasão do Iraque sob pretextos irreais, à revelia da ONU e sem um plano consistente para devolver o país aos iraquianos. Estudos acadêmicos dizem que 100 mil pessoas já morreram na guerra.
O governo do PT acha que, num mundo unipolar, não seria conveniente a única potência ter um presidente forte, carismático e com liderança internacional efetiva. Uma grande potência e um presidente medíocre resultam numa combinação menos agressiva ao equilíbrio mundial.
A posição comodista em relação à reeleição de Bush não significa que o governo brasileiro seja contra Kerry, pelo contrário. Mas nem ministros nem diplomatas conseguem ver com clareza qual seria a diferença entre os dois capaz de estimular o desejo de mudança, além da já batida contraposição entre o protecionismo dos democratas e o liberalismo dos republicanos, que favoreceria comercialmente o Brasil.
O diálogo sobre questões ambientais, sobre organismos internacionais fortes e mesmo sobre Cuba seria mais fácil com Kerry, mas ainda não estão claras suas posições sobre temas considerados fundamentais para o Brasil, como Protocolo de Kyoto, Haiti e Venezuela.
Kerry, como Bush, também não gosta do presidente venezuelano Hugo Chávez, considerado o ponta-de-lança de uma nova esquerda no continente, mas ambos acatam o resultado do plebiscito que o manteve no poder.
No início do governo Lula, Amorim decidiu criar o Grupo de Amigos da Venezuela para tentar dar mais estabilidade ao vizinho. O governo Bush resistiu, mas por fim aderiu. O Itamaraty considera que o episódio da Venezuela serviu para demonstrar aos EUA a capacidade de o Brasil atuar como uma força estabilizadora na América Latina. E não tem claro como Kerry lidaria com isso.
Bush não só estimulou como é um dos principais apoios do Brasil na sua mais arriscada aposta no cenário internacional: a liderança das forças de paz da ONU no Haiti. Além demonstrar a liderança que o país quer assumir na região, sua participação proeminente no Haiti é uma espécie de preço a pagar para conseguir um cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Nem Bush nem Kerry se comprometem com a pretensão.
A preocupação de Kerry com o multilateralismo também se reflete nos discursos sobre ambiente e sobre o Tribunal Penal Internacional (para julgar crimes de guerra). Nos dois casos, Kerry critica as decisões de Bush, que não levou adiante as negociações para a implementação do Protocolo de Kyoto, que prevê a redução da emissão de gás carbônico na atmosfera, e não aceitou que a corte internacional julgasse cidadãos americanos. Apesar das críticas, não está claro se Kerry assinaria os dois acordos.

Livre comércio
Quanto ao comércio, Bush passa mais tranqüilidade. Kerry prometeu, se ganhar, suspender todas as negociações por um período de 120 dias para avaliá-las. Ele insiste em incluir direitos trabalhistas e metas ambientais nos seus acordos de livre comércio, seguindo o receituário democrata. O Itamaraty teme mais protecionismo interno, prejudicando as exportações brasileiras.
O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, acha que a retomada da Alca (Área de Livre Comércio das Américas) seria mais rápida com a continuidade de Bush, sobretudo se o atual representante de Comércio, Robert Zoellick, ficar no cargo.
Após essa ressalva, Rodrigues diz que, para a Alca, mais importante do que quem será o futuro presidente dos EUA são a composição do Congresso americano e a própria dinâmica das negociações entre o Mercosul e a União Européia. Segundo ele, o sucesso das negociações com europeus aumentará a ânsia dos Estados Unidos em fechar um acordo que envolva o Brasil.
Quando o assunto é América do Sul, o comum entre os dois candidatos e seus partidos é a falta de prioridade que eles dão à região. Além disso, qualquer que seja o presidente, ele tem e terá pouca margem de manobra numa série de assuntos. Quem dá o rumo e garante as decisões é o Congresso americano. Que age por pressão da sociedade e do poderosíssimo capital privado do país.

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