São Paulo, sexta-feira, 31 de outubro de 2008

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EUA

A cara dos EUA

POR CONTARDO CALLIGARIS

A ELEIÇÃO presidencial deste ano nos EUA não é uma eleição qualquer. Não saberia dizer onde eu estava e com quem quando foi eleito e reeleito Ronald Reagan. Mesma coisa para Bush (pai e filho) e para Bill Clinton.
Na verdade, só me lembro bem de onde eu estava e com quem no dia do assassinato de John Kennedy, em 1963, e na hora do discurso de resignação de Richard Nixon, em 1974. Lembro-me até de meus sentimentos nessas ocasiões: uma consternação sem palavras em 63 e um estranho contentamento, uma sensação de "missão cumprida" em 74, como se Nixon caísse não por causa do Watergate (será que esse nome ainda significa alguma coisa para alguém?) e pela força das instituições americanas que destituíram o presidente, mas, de alguma forma, pelas mil vozes de protesto na qual a minha se confundia.
Bom, não sei ainda onde e com quem estarei na noite da próxima terça. Mas isto sei: daquela noite me lembrarei.
Os EUA não estão apenas votando para escolher entre republicanos e democratas. Tampouco estão apenas votando para decidir a política econômica e a condução das guerras em curso ou para escolher entre branco e negro, homem e mulher, jovem e velho. Claro, essas oposições são importantes, e certamente voltarei a tratar delas. Mas, antes de mais nada, hoje, os norte-americanos estão votando para definir, ou melhor, redefinir sua cara.
Considere os quatro candidatos (incluindo os vices das duas chapas): cada um deles é uma das caras dos EUA. A ponto que, como nunca antes num passado do qual eu me lembre, a galeria de seus retratos constitui uma espécie de apresentação quase completa do espírito do país.
McCain é a cara de uma nação para a qual a guerra quase permanente (desde sua fundação) foi constitutiva da unidade (somos ingleses, alemães, poloneses, italianos, lituanos, brancos, negros, católicos ou reformados, budistas ou muçulmanos, chineses e por aí vai, mas somos todos americanos na frente de batalha ou atrás de nossas tropas). Ele é também a cara do "big money", o dinheiro grande, que, aliás, sempre se deu bem com a guerra; o conúbio de guerra e dinheiro é mais que simbolizado pelo segundo casamento de McCain que, como ele respondeu numa entrevista, tem "seis ou sete casas", não se lembra direito.
Sarah Palin é o resto do espírito da primeira fronteira, pelo qual a América é o lugar em que cada um, sozinho com seu rifle e sua Bíblia, enfrenta a "natureza selvagem" (e seus vizinhos, se eles forem incômodos e tiverem a idéia de colocar algum governo comum acima da liberdade do indivíduo). Claro, é uma cara um pouco museológica e, eventualmente, brega por sua ignorância do mundo, mas seria ingênuo considerá-la como fora do baralho americano.
Joe Biden é a cara de um sonho que nasceu depois da Segunda Guerra Mundial e foi se perdendo nos últimas duas décadas: o da possibilidade de um trabalhador manual (um colarinho azul) integrar de verdade a classe média. Não é pouca coisa, pois faz parte desse sonho esta idéia americana (que certamente está também no ideário de Sarah Palin): as mãos são tão importantes quanto a cabeça, o fazer tão importante quanto o pensar.
Barak Obama é a cara de um país que continua aberto à imigração e, de fato, deve sua força e riqueza à garra dos que, a cada dia, ainda chegam procurando a chance de um futuro melhor. Ele é, aliás, a encarnação da "terra das oportunidades". Seu estatuto de americano de primeira geração ao menos por parte de pai - confirma a promessa que é feita a cada imigrante na hora em que ele se naturaliza americano: "Em matéria de cidadania, não existe privilégio de sênior".
Com qual cara (ou quais caras) os EUA acordarão na próxima quarta?
Saio hoje para Nova York e escreverei diariamente, de lá, sobre o cotidiano dessa reta final.


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