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Democracia e fé em teste na Tunísia

Geração moldada por prisão e exílio chega ao poder

Por ANTHONY SHADID

Este texto foi um dos últimos escrito por Anthony Shadid, antes de sua morte na Síria, em 16 de fevereiro

Túnis

A epifania de Said Ferjani se deu muito tempo depois de sua infância pobre na Tunísia, depois de um renascimento religioso ter despertado seu intelecto, depois de ele ter conspirado para promover um golpe de Estado, depois de um torturador ter quebrado sua coluna e depois de ele ter fugido para o Reino Unido, como outros islâmicos, com um passaporte emprestado, para procurar refúgio.

Vinte e dois anos mais tarde, quando Ferjani retornou a seu país, compreendeu a tarefa pela frente: construir uma democracia liderada por islâmicos que possa ser exemplo para o mundo árabe.

"Esta é nossa prova", diz.

Se as revoltas que varreram o Oriente Médio um ano atrás marcaram a chegada à maioridade de jovens determinados a imaginar um outro futuro para o mundo árabe, o período que se seguiu a elas e que trouxe eleições ao Egito e à Tunísia e a perspectiva de influência islâmica decisiva no Marrocos, na Líbia e, possivelmente, na Síria, é o momento de outra geração, mais velha.

Ninguém sabe qual será o desenlace de um dos capítulos mais críticos na história do mundo árabe moderno, à medida que a região se afasta da ditadura em direção a algo que vem mostrando ser muito mais ambíguo. Mas a geração personificada por Ferjani, moldada pela prisão, pelo exílio e pela repressão, pela fé e por alianças que levaram anos para ser forjadas, terá a maior influência em determinar o que é que vai emergir.

A ascensão dessa geração mapeia a força ainda presente da Irmandade Muçulmana, movimento fundamentalista lançado no Egito em 1928. Mas as correntes intelectuais que, no passado, se irradiavam a partir do Egito hoje muitas vezes fluem em sentido contrário, com ativistas e estudiosos no Marrocos e Tunísia exportando ideias que buscam uma síntese entre elementos que muitos ainda veem como inconciliáveis: a fé e a democracia.

Tão exuberante quanto é religioso, Ferjani, 57, admite a existência das dúvidas. "Estamos tendo uma oportunidade de ouro", diz, sorrindo. "E o que me interessa nessa oportunidade não é o controle. Me interessa criar o melhor sistema carismático: um sistema carismático democrático."

Nascido em Kairouan, Ferjani não era especialmente religioso quando criança. Seu pai, um comerciante, nunca conseguia ganhar dinheiro suficiente para as necessidades de sua família. "Sentimos o gosto da pobreza", recorda.

Segundo seu próprio relato, até fazer 16 anos ele era um garoto rebelde. Naquele ano, Rashid Ghannouchi, nacionalista árabe convertido ao islamismo, foi lecionar árabe em Kairouan. Acabou deixando o cargo para formar o Movimento Tendência Islâmica e, mais tarde, o partido Al Nahda.

"Ele vivia falando do mundo e da política", diz Ferjani. "Por que nós, muçulmanos, éramos atrasados? O atraso era nosso destino?"

Essas perguntas moldaram gerações sucessivas de islâmicos. O tema foi discutido na obra de Hassan al Banna, o fundador da Irmandade Muçulmana. Estava presente também nas obras de Sayyid Qutb, pensador egípcio enforcado em 1966, ajudando a promover a ascensão do islamismo militante e violento.

Mais tarde, "O Dever Oculto", um texto que deitou as bases para o assassinato de Anwar Sadat, em 1981, procurou responder a questão. Coisa também feita por Ghannouchi, que defendia o pluralismo e a democracia.

Em Kairouan, Ferjani e cem outros alunos estudaram todos esses textos. "Ler, ler, ler", recorda-se. "Eu lia mesmo enquanto estava caminhando."

Ferjani acabou se mudando para a capital, Túnis, onde se integrou ao grupo de seu antigo professor.

Na época, a Tunísia era governada por Habib Bourguiba, que era rigidamente secular. Bourguiba reprimiu os seguidores de Ghannouchi, e Ferjani conta que ajudou a tramar um golpe de Estado. Horas antes do momento previsto para lançarem o golpe, Zine el Abidine Ben Ali, o ministro do Interior de Bourguiba, liderou seu próprio golpe.

Dez dias mais tarde, em 17 de novembro de 1987, Ferjani foi detido. Passou 18 meses na prisão, onde seus interrogadores o amarraram a uma barra de ferro e fraturaram uma vértebra sua. Sem conseguir andar e sofrendo dores lancinantes, a cada vez que precisava se movimentar ele era carregado por outros prisioneiros.

"Eu orava até o amanhecer e então dormia. Adormecia apenas porque não me restava mais nada", recorda-se.

Cinco meses depois de ser libertado, ele treinou para conseguir caminhar 50 metros, para poder passar despercebido da segurança no aeroporto. Raspou a barba e tomou emprestado o passaporte de um amigo. Então embarcou em um avião para Londres e pediu asilo.

Londres, na década de 1990, era um centro de política islâmica. Ghannouchi não demorou a chegar também à capital britânica, onde salafistas da Arábia Saudita conviviam com xiitas do Bahrein, seus adversários frequentes.

"No exílio, as pessoas sentem que precisam umas das outras", diz Azzam Tamimi, estudioso e ativista palestino em Londres. "Quando você volta a seu país, o ambiente nacional se impõe. As prioridades passam a ser outras."

Fixando-se em Londres com sua mulher e cinco filhos, Ferjani não demorou a mergulhar nas discussões sobre a Al Qaeda e Osama bin Laden. Ao mesmo tempo, porém, estudou história da Europa, democracia e transformações sociais.

Uma mudança estava em curso, inspirada pela Irmandade Muçulmana. Ghannouchi tornou-se um dos primeiros proponentes de um islamismo mais inclusivo e tolerante. Desde o início, defendeu uma participação maior das mulheres no Parlamento.

Embora o Ocidente frequentemente ignore o fato, as questões relativas à conciliação entre democracia e islã passaram a ser debatidas com ardor a partir dos anos 1990.

Os críticos acham que essas mudanças de postura são táticas. Mas a própria essência dos debates vem sendo fundamental para as correntes intelectuais do islã político de hoje.

O ideal antigo da Irmandade era expresso como "ouvir e obedecer". "Isso já acabou", diz Tariq Ramadan, importante estudioso islâmico que vive em Londres.

Em Londres, Ferjani incorporou ideias ocidentais quando formulou sua proposta de um Estado carismático. Depois de rejeitar veementemente a esquerda, ele hoje adere à crítica ao capitalismo feita por Karl Marx. Diz que o exílio o fez mudar "muito, profundamente".

Num dia frio de inverno, Ferjani estava sentado na sede do Al Nahda na Tunísia, com o espírito sério. Os jornais que fazem oposição ao partido estavam repletos de artigos relatando abusos cometidos por islâmicos puritanos e sobre a suposta tolerância do Al Nahda ao extremismo. Os debates culturais pareciam ganhar precedência sobre as dificuldades da economia.

"Estamos enfrentando os problemas", disse Ferjani. Mas, em um momento de franqueza, desabafou: "Será que em menos de um mês é possível resolver problemas que existem há 50 anos?"

No passado, ele tinha dito em tom de brincadeira: "O poder corrompe, sabia?". Agora, porém, ele próprio se debatia com essas questões de poder. Ao seu lado estavam pilhas de exemplares do jornal do partido, "A Aurora". Uma coluna no jornal fazia alusões sombrias a conspirações. Na primeira página lia-se "o Parlamento é contra os protestos e a favor de ouvir as reivindicações do povo".

"Não tememos a liberdade de expressão, mas não podemos permitir a desordem", disse Ferjani. "O povo precisa saber que há lei e ordem."

Ele sugeriu que os manifestantes devem obter autorização da polícia para realizarem protestos. Disse temer que a imprensa aja impensadamente. Deu a entender que as forças do antigo regime estão conspirando. Seu tom de voz otimista se tornara sério, e suas palavras eram hesitantes.

"Aconteça o que acontecer, todo o mundo precisa tomar cuidado para não se deixar arrastar por um instinto ditatorial. Não podemos perder a alma de nossa revolução."

Essa era a prova, disse Ferjani.

Colaborou David D. Kirkpatrick

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