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Marfim de sangue

Demanda chinesa alimenta massacre de elefantes na África

TYLER HICKS/THE NEW YORK TIMES
Quadrilhas armadas estão matando elefantes aos milhares no Congo, aproveitando os altos preços do marfim.
Quadrilhas armadas estão matando elefantes aos milhares no Congo, aproveitando os altos preços do marfim.

Por JEFFREY GETTLEMAN

Garamba National Park,

República Democrática do Congo

Em 30 anos combatendo caçadores ilegais, Paul Onyango nunca tinha visto nada assim. Vinte e dois elefantes mortos juntos no meio da savana, muitos abatidos com uma única bala na parte superior da cabeça.

Não havia rastros que se afastavam dos elefantes, nem qualquer sinal de que os caçadores tivessem rastreado os animais em terra. As presas tinham sido cortadas fora, mas a carne dos animais continuava intacta.

Vários dias depois, no início de abril, guardas do Parque Nacional de Garamba viram um helicóptero militar de Uganda sobrevoando o parque em altitude muito baixa, num vôo não autorizado, mas disseram que, ao ser detectado, o helicóptero virou abruptamente e foi embora. Funcionários do parque, cientistas e as autoridades congolesas agora acreditam que foram militares ugandenses que mataram os 22 elefantes, desde um helicóptero, e levaram embora marfim no valor de mais de US$ 1 milhão.

"Os disparos foram feitos com precisão", disse Onyango, chefe dos guardas-florestais de Garamba. "Eles atiraram até nos filhotes. Por que? É como se tivessem vindo para cá para destruir tudo."

A África está passando por uma matança épica de elefantes. Grupos conservacionistas dizem que os caçadores ilegais estão exterminando dezenas de milhares de elefantes por ano, mais que em qualquer momento das duas décadas passadas, e o comércio ilegal de marfim está se militarizando.

O marfim, ao que tudo indica, é o mais recente recurso natural africano envolvido em conflitos. Alguns dos mais notórios grupos armados do continente, incluindo o Exército de Resistência do Senhor, o Shabab e os "janjaweeds" de Darfur, vêm caçando elefantes e usando suas presas para comprar armas e levar adiante sua violência e caos. Quadrilhas organizadas estão formando ligações com eles para transportar o marfim pelo mundo afora, aproveitando a existência de Estados turbulentos, fronteiras porosas e autoridades corruptas da África subsaariana até a China, dizem autoridades policiais.

Mas não são apenas agentes fora da lei que lucram. Membros de alguns dos Exércitos africanos que o governo americano treina e apoia -em Uganda, no Congo e no Sudão do Sul- estão envolvidos na caça ilegal de elefantes e no tráfico internacional de marfim.

Segundo especialistas, até 70% do marfim ilegal está indo para a China, e, embora os chineses cobicem o marfim há séculos, nunca antes tantos chineses têm tido os meios de possuí-lo. O boom econômico chinês criou uma classe média enorme, fato que empurrou o preço do marfim para o preço estratosférico de US$ 500 por quilo nas ruas de Pequim.

Mais de 150 cidadãos chineses foram presos em toda a África no ano passado, do Quênia à Nigéria, por contrabando de marfim. E há indicações crescentes de que a caça ilegal de elefantes aumenta em áreas onde os animais estão presentes e em que operários chineses estão construindo estradas.

"A China está no epicentro da demanda", disse um funcionário sênior do Departamento de Estado dos EUA, Robert Hormat. "Sem a demanda chinesa, este comércio praticamente deixaria de existir."

Com frequência, soldados congoleses são presos por caça ilegal e tráfico de marfim. As forças armadas do Sudão do Sul com frequência entram em choque com guardas-florestais.

A Interpol está ajudando a investigar as matanças em massa no parque de Garamba, procurando comparar amostras de DNA dos crânios dos elefantes com um grande carregamento de presas apreendido recentemente num aeroporto de Uganda em caixas rotuladas "artigos domésticos".

As presas de um elefante adulto podem valer mais de dez vezes a renda anual média dos habitantes de muitos países africanos. Na Tanzânia, camponeses miseráveis vêm envenenando abóboras e colocando-as nas estradas para que os elefantes as comam.

No ano passado, o volume de marfim ilegal apreendido em todo o mundo marcou um recorde, com 38,8 toneladas (o equivalente às presas de mais de 4.000 elefantes mortos). A polícia vê esse fato como indício claro de que o crime organizado penetrou no submundo do marfim, porque apenas uma máquina criminal experiente seria capaz de transportar centenas de quilos de presas por distâncias de milhares de quilômetros.

Os traficantes são " parte de organizações criminosas que operam na África e são comandadas desde a Ásia", diz Tom Milliken, diretor do Sistema de Informações sobre o Comércio de Elefantes, projeto internacional de monitoramento do marfim.

Richard Ruggiero, do Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos EUA, comentou: "Estamos passando pela maior perda percentual de elefantes na história".

Para alguns especialistas, a própria sobrevivência da espécie está em risco. "As enormes populações de elefantes da África Ocidental já desapareceram e os elefantes do centro e leste do continente estão sumindo em ritmo acelerado", disse o ecologista Andrew Dobson, da Universidade Princeton, de Nova Jersey. "A questão é: queremos ver nossos filhos crescerem num mundo sem elefantes?"

'Atiramos primeiro'

Garamba é considerado um dos parques naturais mais impressionantes da África. Hoje, porém, é um verdadeiro campo de batalha. Todas as manhãs, os 140 guardas-florestais do parque se equipam com fuzis, metralhadoras e granadas impelidas por foguetes.

"Não negociamos, não damos qualquer aviso -atiramos primeiro", contou Onyango.

Em junho, ele ouviu uma rajada de disparos. Seus homens passaram horas arrastando-se de barriga pelo capim alto, até verem caçadores ilegais talhando vários elefantes. No instante em que eles atiraram contra os caçadores ilegais, a área toda pareceu ganhar vida, com disparos por todo lado.

"A maioria dos caçadores ilegais economiza munição, mas esses caras estavam disparando como se estivessem no Iraque. De repente nos vimos em desvantagem", disse ele.

Naquele dia, as duas metralhadoras velhas usadas pelos guardas-florestais emperraram e eles escaparam com vida por pouco. Onze guardas-florestais foram mortos desde 2008 e alguns guardas tiveram seus filhos sequestrados. Uma investigação posterior indicou que os caçadores ilegais eram integrantes do Exército de Resistência do Senhor, um grupo rebelde brutal que circula pela África central, matando camponeses e escravizando crianças. Acredita-se que o líder do grupo, o foragido Joseph Kony, esteja escondido num canto remoto da República Centro-Africana.

O marfim talvez seja a nova fonte de recursos que esteja garantindo a sobrevivência de Kony. Várias pessoas que escaparam do grupo disseram que Kony ordenou a seus combatentes matarem o maior número possível de elefantes e lhe enviarem as presas.

Vários comerciantes sudaneses de marfim disseram que o marfim do Congo e da República Centro-Africana atravessa a grande região sudanesa desértica de Darfur e, de lá, vai para Omdurman, ao norte, com a ajuda de autoridades sudanesas corruptas.

Na costa oriental da África, o porto queniano de Mombaça é um importante centro de traslado do marfim. Uma porcentagem relativamente pequena dos contêineres que passam pelo porto é inspecionada e o marfim já foi transportado escondido em carregamentos de abacates ou anchovas.

Vários comerciantes sudaneses de marfim e representantes ocidentais disseram que as infames milícias janjaweed, de Darfur, também praticam a caça ilegal em grande escala. Hoje, suspeita-se que centenas de milicianos janjaweeds tenham viajado a cavalo mais de 950 km, vindos do Sudão, e abatido pelo menos 300 elefantes no Parque Nacional de Bouba Ndjida, nos Camarões, em janeiro.

Dinheiro para militantes

Em 2010, soldados ugandenses que estavam à procura de Joseph Kony nas florestas da República Centro-Africana toparam com uma caravana de janjaweeds transportando marfim. "Havia 400 homens, mulas de carga, um grande acampamento, armas em grande quantidade", disse um diplomata ocidental. Seguiu-se uma batalha e mais de dez ugandenses foram mortos.

Vários líderes somalis disseram que o grupo militante islâmico Shabab, que jurou fidelidade à Al Qaeda, começou recentemente a treinar combatentes para infiltrar o vizinho Quênia, matar elefantes e extrair seu marfim, para levantar recursos para o grupo.

Um antigo aliado do Shabab disse que o grupo vem prometendo "facilitar a venda" do marfim e que incentivou camponeses na fronteira entre o Quênia e a Somália e lhes levar presas de elefantes, que em seguida vão para o porto de Kismayo, conhecido centro de contrabando e última cidade importante que ainda se encontra sob controle do Shabab.

"É um negócio de alto risco, mas que traz lucros excepcionais", comentou Hassan Majengo, morador de Kismayo que acompanha o comércio de marfim.

Em Garamba, os guardas-florestais já prenderam muitos soldados do governo congolês, alguns dos quais foram detidos com presas, pedaços de carne de elefante, e vestindo as boinas vermelhas usadas por membros da guarda presidencial de elite.

Um promotor militar congolês, o major Jean-Pierre Mulaku, reconheceu: "Alguns elementos de nosso Exército estão envolvidos. É dinheiro fácil."

Segundo o cientista americano John Hart, um dos principais pesquisadores sobre elefantes no Congo, "militares congoleses estão envolvidos em quase todas as atividades de caça ilegal de elefantes", fazendo das forças armadas "as maiores envolvidas na matança ilegal de elefantes na RDC".

Os guardas-florestais de Garamba e um funcionário de inteligência do governo congolês dizem que também combatem rotineiramente soldados do Exército de Libertação do Povo do Sudão, o Exército do Sudão do Sul.

Mas a suposta caça ilegal feita com helicópteros é novidade. A organização de conservação African Parks, com sede na África do Sul e que administra o parque de Garamba, tem fotos de um helicóptero Mi-17 de transporte militar sobrevoando o parque em baixa altitude em abril e disse que, pelo número de registro, identificou o aparelho como sendo das Forças Armadas de Uganda.

Ninguém sabe quantos elefantes estão sendo exterminados todos os anos, mas muitos conservacionistas concordam que são "dezenas de milhares" e que 2012 provavelmente será pior que 2011.

Alguns dos elefantes abatidos recentemente tinham sido sexualmente mutilados, com seus mamilos ou genitália cortados, possivelmente para serem vendidos. É algo que os pesquisadores dizem que não tinham encontrado antes.

Garamba enfrenta desafios aparentemente infinitos, muitos deles ligados à falência completa do próprio Congo. Alguns dos guardas-florestais são caçadores ilegais, eles próprios, matando os animais que são encarregados de proteger. Dizem que seus salários são muito baixos para possibilitar sua sobrevivência.

Houve época em que o Parque Nacional de Garamba tinha mais de 20 mil elefantes. No ano passado, havia cerca de 2.800. Neste ano, há possíveis 2.400.

"É como a guerra das drogas", disse Luis Arranz, o administrador do parque. "Enquanto as pessoas continuam a comprar e pagar pelo marfim, é impossível acabar com o tráfico."

Isma'il Kushkush colaborou com reportagem de Omdurman, Sudão; Mia Li de Pequim; e um jornalista somali de Mogadishu, na Somália

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