São Paulo, segunda-feira, 03 de maio de 2010

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"Moby Dick" é convertido em ópera

Por MATTHEW GUREWITSCH

Sair em busca de aventuras pode ser sinônimo de procurar problemas -mas quantos problemas você previa encontrar? Cinco anos atrás, quando a Ópera de Dallas (EUA) começou a planejar sua transferência para o novo e luxuoso Winspear Opera House, o diretor artístico da companhia, Jonathan Pell, procurou o compositor Jake Heggie para encomendar dele uma ópera para a temporada inaugural, com todos os riscos implícitos em tal projeto.
Sem hesitar, Heggie lhe disse: "Quero fazer uma ópera a partir de 'Moby Dick'". Pell fez uma pausa e indagou: "Mais alguma coisa?". Ao nível literal, o grande romance americano de Herman Melville diz respeito ao afundamento de um navio, dilacerado por uma grande baleia branca. Ao nível da metáfora, ele retrata o homem prometeico que se revolta contra o Todo-Poderoso.
A ideia foi proposta originalmente pelo dramaturgo Terrence McNally, libretista da primeira ópera de Heggie, o sucesso internacional "Dead Man Walking" -um misto de drama e documentário sobre o corredor da morte que fez sua estreia em San Francisco dez anos atrás.
"Fui pego de surpresa", disse recentemente Heggie, 49, em Dallas, onde a equipe criativa e um elenco de grandes nomes estavam reunidos para os últimos ensaios antes da première de "Moby Dick", na sexta-feira passada. "Que ousadia! Mas a ópera deve mesmo ser ousada, não?"
Após alguma reflexão, Pell reconheceu que não havia nenhuma alternativa boa e convocou as óperas de San Francisco, San Diego, Calgary e a companhia Estadual de Ópera da Austrália do Sul a compartilhar a encomenda do trabalho. "Discutimos outras ideias", disse, "mas notei que não havia outra coisa que pudesse inspirar Jake da mesma maneira".
Inspirar e assustar. Em dezembro de 2008, Heggie já tinha jogado fora 50 páginas de música e guardado seis que achou que poderia usar. O avanço se deu quando ele completou a primeira ária de Acab. "Quando componho uma ópera, em dado momento os personagens começam a cantar para mim", disse Heggie.
"Nunca duvidei que a música estivesse ali. Acab é o tronco do qual nascem os outros galhos. Quando eu completei aquela ária, encontrei meu mundo musical. Mas esta é minha primeira obra que cobrou um preço físico de mim, uma exaustão, uma sensação de que fiquei mais velho. 'Moby Dick' mereceu isso."
Heggie teve que embarcar em sua jornada sem McNally, que estava com câncer pulmonar. Mas pôde contar com outros parceiros de longa data e nos quais confiava: o libretista Gene Scheer e o diretor Leonard Foglia.
Para Scheer, uma dificuldade grande foi captar a música shakespeariana forte da voz do autor. "Os personagens são pessoas reais, e eu queria que soassem como pessoas reais de sua época", disse Scheer.
"Em todos os lugares onde foi possível usar a linguagem de Melville, eu o fiz. Mais ou menos 50% do libreto saiu diretamente do livro. Mas a voz do narrador se foi. Ela está na música."
Os ouvintes que esperam pela famosa linha inicial, "Podem me chamar de Ismael", vão se decepcionar. Como explicou T. Walter Herbert, presidente da Sociedade Melville, em simpósio recente sobre a ópera, para apreciar a força apocalíptica dessas palavras poderíamos imaginar um romance americano contemporâneo começando com "podem me chamar de Saddam".
Na ópera, o personagem foi rebatizado com o nome sugestivo de "Greenhorn" (que signica "marinheiro de primeira viagem"). Vale notar que "greenhorn" aparece duas vezes no livro como substantivo comum, aplicado a outra pessoa.
Extrair um arco narrativo teso do texto de Melville, notoriamente digressivo, foi outro desafio. Scheer concentrou a ação sobre quatro personagens: o viajante Greenhorn, o exótico primeiro arpoador Quiqueg, canibal e vendedor de cabeças humanas, e, entre os oficiais, Acab e seu fiel primeiro imediato, Starbuck, quacre e pai de família que, por algum tempo, consegue manter sob controle a obsessão suicida de Acab com a baleia branca.
Figuras ondulantes na primeira página da partitura evocam a música aquática proto-minimalista de Wagner em "O Ouro do Reno". Os acordes conflitantes em uma tempestade lembram as trovoadas e os raios de "Otelo", de Verdi.
E a ligação com Melville e o elemento marítimo inevitavelmente trazem à mente o Benjamin Britten de "Billy Budd" e "Peter Grimes". Mais assustador ainda, o choro traumatizado do marinheiro Pip -o Tolo de Melville diante do Lear de seu Acab- pode lembrar algo do coro de meninos da abertura de "A Paixão Segundo São Mateus", de Bach.
O regente Patrick Summers acha a grande gama de afinidades inteiramente compatível com uma voz original. "'Moby Dick' é ópera grandiosa e honra a tradição da ópera", disse.


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