São Paulo, segunda-feira, 03 de outubro de 2011

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Contra a doença, engenhosidade

Ainda neste ano, a população mundial chegará a 7 bilhões de pessoas. Muitos não têm acesso a cuidados médicos sofisticados que são comuns em boa parte do mundo industrializado, e ainda se morre de doenças já praticamente erradicadas em outros lugares. Uma maneira de resolver o problema seria disponibilizar remédios e vacinas para todos, mas em muitos países esse sonho ainda é caro demais

Agnes Dherbeys Para The New York Times
A tailandesa Sawai Panomyai (à esq.), que extraiu o útero após passar por um exame que usa vinagre para localizar lesões pré-cancerosas

Por DONALD G. McNEIL Jr.
Poyai, Tailândia

Maikaew Panomyai fez uma dancinha ao sair da sala de exame, requebrando os quadris e gritando, no seu inglês limitado: "Tá tudo bem! Tá tudo bem!"
Tradução: a enfermeira acaba de me dizer eu não tenho câncer de cútero, e que até a manchinha branca que tratei há três anos continua sumida.
Esse diagnóstico tranquilizador foi possível graças a um procedimento simples, rápido e barato, capaz de fazer pelos países pobres o que o Papanicolau fez pelos ricos: acabar com o reinado do câncer de colo do útero (ou câncer cervical) como câncer que mais mata mulheres. O ingrediente mágico? Vinagre doméstico.
Todos os anos, mais de 250 mil mulheres morrem de câncer cervical, sendo 85% delas em países de renda média e baixa. Décadas atrás, era o câncer que mais matava mulheres nos EUA; hoje, fica atrás dos cânceres de pulmão, cólon, mama e pele.
As enfermeiras que usam o procedimento, desenvolvido na década de 1990 pela Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, e aprovado no ano passado pela Organização Mundial de Saúde, esfregam vinagre no colo do útero. O vinagre deixa brancas as manchas pré-cancerosas, que podem ser cauterizadas com dióxido de carbono, disponível em qualquer engarrafadora da Coca-Cola.
Esse é um dos procedimentos baratos e eficazes que vêm sendo testados nos países em desenvolvimento, que incluem técnicas cirúrgicas e de diagnóstico, inseticidas, medicamentos e próteses.
Num exame de Papanicolau, o médico raspa uma amostra do colo do útero, que é examinada em laboratório. Muitos países pobres, no entanto, não têm laboratórios confiáveis, e os resultados podem demorar semanas. Quando eles apontam lesões pré-cancerosas, pode ser difícil localizar mulheres que voltaram às áreas distantes onde vivem.
Maikaew, 37, poderia ter sido uma delas. Ela é caixa em um restaurante na longínqua ilha turística de Ko Chang. Tinha ido à aldeia de Poyai para uma breve visita familiar, e se submeteu ao exame por insistência da sua mãe.
A mesma coisa ocorrera três anos antes, e ela de fato tinha uma mancha branca. (Elas parecem verrugas, e são causadas pelo vírus do papilomavírus humano.) A mancha foi extirpada com crioterapia, um procedimento que segundo ela doeu pouco.
Por ter passado por dois exames antes dos 40 anos, seu risco de desenvolver câncer cervical diminuiu 65%, segundo estudo da Aliança para a Prevenção do Câncer Cervical, financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates.
O procedimento, conhecido como VIA/crio, pode ser feito por uma enfermeira, e basta uma consulta para detectar e matar um câncer incipiente.
Mais de 20 nações, incluindo Gana e Zimbábue, já fizeram projetos-piloto com o VIA/crio, mas foi a Tailândia que mais avançou na sua adoção. O procedimento agora é rotina em 29 das 75 províncias, e 500 mil de um total de 8 milhões de mulheres da população-alvo, na faixa dos 30 aos 44 anos, já foram submetidas pelo menos uma vez ao exame.
O ginecologista Bandit Chumworathayi, da Universidade de Khon Kaen, um dos coordenadores do primeiro estudo tailandês sobre o VIA/crio, explica que o vinagre realça os tumores porque eles têm mais DNA -e portanto mais proteína e menos água- do que outros tecidos.
Ele revela pré-tumores com mais precisão do que um exame Papanicolau comum. Mas também resulta em mais falsos positivos -pontos que clareiam sem serem malignos. Por isso, algumas mulheres passam por crioterapias desnecessárias.
Mas a cauterização tem eficácia em torno de 90%, e o principal efeito colateral é uma leve sensação de queimação, que permanece um dia ou dois. Já as biopsias, que são velho método, podem causar sangramento.
"Alguns médicos resistem [ao uso da crioterapia]", disse Wachara Eamratsameekool, ginecologista que ajudou a implantar o procedimento na região rural de Roi Et. "Dizem que é 'atendimento pobre para gente pobre'. Isso é uma má interpretação. Trata-se do uso mais eficaz dos nossos recursos."
Em um workshop, enfermeiras aprendizes observavam cartões mostrando problemas diagnosticáveis do colo do útero, e faziam exames ginecológicos em manequins de plástico. Salsichas fatiadas, presas no fundo de tubos plásticos, permitiam que elas treinassem a crioterapia.
Então, depois do almoço, elas se dividiram em pequenos grupos e foram de micro-ônibus para clínicas rurais dos arredores, para praticarem em pacientes mulheres de verdade.
Como o câncer cervical leva décadas para se desenvolver, ainda é cedo para provar que a Tailândia reduziu a incidência da doença. Na verdade, a província de Roi Et, onde começou a triagem em massa, tem uma taxa maior do que a normal, mas os médicos atribuem isso à difusão dos exames. Entre 6.000 mulheres recrutadas há 11 anos para o primeiro teste, nem uma só desenvolveu totalmente um câncer.
O VIA/crio foi desenvolvido na década de 1990 por Paul Blumenthal, um ginecologista americano que trabalhava na África, e por Rengaswamy Sankaranarayanan, na Índia. Blumenthal disse que ele e seus colegas da Johns Hopkins haviam debatido maneiras de tornar as lesões cervicais mais visíveis, e concluíram que branqueá-las com ácido acético (vinagre) seria eficaz. A cauterização a frio das lesões já é rotina na ginecologia e na dermatologia; o desafio era torná-la simples e barata. O nitrogênio líquido é difícil de obter, mas o dióxido de carbono é amplamente disponível.
A Tailândia parece perfeita para a técnica. Tem mais de 100 mil enfermeiras e uma rede de clínicas rurais. O índice de alfabetização da população é de 95%, e os médicos gozam de confiança.
Mas o verdadeiro segredo, segundo Wachara, é que "a Tailândia tem a dona Kobchitt".
Kobchitt Limpaphayon é a ginecologista da família real tailandesa. "Kobbie é uma força da natureza", disse Blumenthal, que tem lecionado junto com ela.
Em 1971, ainda recém-formada, ela ajudou a criar e implementar o Programa Johns Hopkins para a Educação Internacional em Ginecologia e Obstetrícia.
Em 1999, a médica leu um estudo de Blumenthal e lhe pediu para introduzir o método VIA/crio na Tailândia.
Sem seus contatos e seu poder de persuasão, disse Bandit, teria sido impossível levar o conservador Real Colégio Tailandês de Obstetras e Ginecologistas a abrir mão do exame Papanicolau, ou convencer o Parlamento a autorizar enfermeiras a fazerem a crioterapia, antes restrita apenas a médicos.
Os exames gratuitos em clínicas públicas são essenciais para pessoas como Yupin Promasorn, 36, que fazia parte do grupo de Maikaew.
Ela vende comidas em Bancoc, e seu marido dirige um tuk-tuk (riquixá motorizado). Com dois filhos, ela não tem tempo para as filas dos hospitais públicos da capital, nem dinheiro para um médico particular.
Então ela e o marido viajaram 12 horas de tuk-tuk até a aldeia natal dela. Ao saber do resultado negativo, ela sentou-se numa cadeira, se abanando. "Parece que uma montanha pesada saiu do meu peito", disse.


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