São Paulo, segunda-feira, 05 de julho de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Somália transforma crianças em militares


Jovens combatentes são financiados com dinheiro dos EUA

Por JEFFREY GETTLEMAN

MOGADÍCIO, Somália - Awil Salah Osman ronda as ruas da devastada capital da Somália e se parece com muitos outros meninos nas suas roupas esfarrapadas, nos seus membros esquálidos e nos seus olhos ávidos por atenção e por afeto.
Mas Awil, 12, tem duas diferenças notáveis: ele porta um fuzil automático Kalashnikov totalmente carregado e trabalha para uma força militar que é substancialmente armada e financiada pelos Estados Unidos.
"Você!", grita ele para um motorista que tenta passar sorrateiramente por seu posto de controle. Seu rosto de querubim é tomado por um ódio violento, e ele brande a arma ameaçadoramente. "Você sabe o que estou fazendo aqui! Pare o seu carro!", ordena. O motorista obedece imediatamente.
É sabido que insurgentes islâmicos somalis estão arrancando crianças dos campos de futebol para transformá-las em soldados. Mas Awil não é um rebelde. Ele trabalha para o Governo Federal Transitório da Somália, uma peça-chave da estratégia americana de contraterrorismo no Chifre da África.
Segundo grupos somalis de direitos humanos e funcionários da ONU, o governo local, que depende da assistência ocidental para sobreviver, está mobilizando centenas de crianças ou mais para as linhas de combate, algumas com apenas nove anos.
As Nações Unidas dizem que o governo da Somália é um dos "mais persistentes violadores" do mundo no envio de crianças à guerra, colocando-se ao lado de grupos rebeldes notórios na África, como o Exército de Resistência do Senhor.
Funcionários do governo somali admitem não ter feito as checagens necessárias e revelaram também que o governo dos EUA estava ajudando a pagar os soldados, um acordo que autoridades americanas confirmaram, abrindo a possibilidade de que contribuintes americanos estejam pagando alguns desses combatentes infantis.
A ONU afirma ter oferecido ao governo somali planos específicos para desmobilizar as crianças. Mas os líderes da Somália, há anos lutando para resistir aos avanços dos insurgentes, estão paralisados por acirradas disputas internas e até agora não deram resposta. Várias autoridades americanas também se disseram preocupadas com o uso de crianças como soldados e afirmaram estar pressionando seus homólogos somalis a tomar mais cuidado.
Mas, questionado sobre como o governo dos EUA poderia assegurar que não há dinheiro americano sendo usado para armar crianças, um funcionário disse: "Não tenho uma boa resposta para isso".
Segundo o Unicef, braço da ONU para a infância, só dois países não ratificaram a Convenção sobre os Direitos da Criança, que proíbe o uso de soldados menores de 15 anos: os Estados Unidos e a Somália. Mas os EUA ratificaram um acordo posterior destinado a impedir o recrutamento e uso de crianças como soldados.
Muitos grupos de direitos humanos consideram a situação inaceitável, e o próprio presidente dos EUA, Barack Obama, quando o assunto foi abordado durante sua campanha, não discordou. "É constrangedor nos vermos na companhia da Somália, uma terra sem lei", disse. Awil sofre para carregar a arma, que pesa cerca de 5 kg. Às vezes recebe uma ajuda do colega Ahmed Hassan, 15.
Ahmed diz que foi mandado a Uganda há mais de dois anos para treinamento militar, o que não foi possível verificar independentemente. "Uma das coisas que aprendi", contou ele, entusiasmado, "é como matar com uma faca".
As crianças não têm muitas opções na Somália. Depois do colapso do governo, em 1991, toda uma geração foi deixada solta nas ruas. A maioria das crianças jamais se sentou em uma sala de aula ou brincou num parque. Seus ossos foram atrofiados por fomes ligadas ao conflito, suas psiques foram abaladas por todas as mortes que testemunharam.
"Do que eu gosto?", perguntou Awil. "Gosto da arma."
Ele contou que foi abandonado pelos pais, que fugiram para o Iêmen, e entrou para uma milícia por volta dos sete anos. Vive agora com outros soldados do governo em uma casa em ruínas, repleta de caixas de cigarros e roupas malcheirosas.
Recebe cerca de US$ 1,50 por dia, mas só de vez em quando, como a maioria dos soldados. Sua cama é um colchão coberto de moscas, que ele divide com outras duas crianças militares. "Ele deveria estar na escola", disse o comandante de Awil, Abdisalam Abdillahi. "Mas não há escola."
Ali Sheikh Yassin, vice-presidente do Centro Elman da Paz e dos Direitos Humanos, em Mogadício, disse que as crianças compõem cerca de 20% das tropas do governo (que supostamente totalizam de 5.000 a 10 mil soldados) e 80% das forças rebeldes.
"Esses meninos podem sofrer muito facilmente uma lavagem cerebral", disse Ali. "Nem é preciso pagá-los."


Texto Anterior: Alemães revelam um novo lado
Próximo Texto: Violência contra mulheres cresce no Haiti
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.