São Paulo, segunda-feira, 07 de fevereiro de 2011

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A 'cidade da cura' da médica somali

Por MOHAMMED IBRAHIM e JEFFREY GETTLEMAN

Mogadishu, Somália
Pouco antes do amanhecer do dia 5 de maio, 750 militantes cercaram o hospital da dra. Hawa Abdi. Mama Hawa, como é conhecida a médica, ouviu o som de tiros, olhou pela janela e percebeu que não teria como opor resistência.
"Por que você dirige este hospital?", perguntaram os homens armados. "Você é velha. E é mulher!"
Eles não pareceram se importar com o fato de Mama Hawa, 63, ser uma das poucas médicas formadas em um raio de muitos quilômetros e de a clínica, a escola e o programa de alimentação que ela ergueu em suas terras darem suporte a 100 mil pessoas, em sua maioria refugiados em situação desesperadora.
Comandantes da milícia mantiveram Abdi sob a mira de suas armas durante horas, enquanto seus subordinados -em sua maioria meninos de 15 ou 16 anos- depredavam o hospital, disparando contra aparelhos de anestesia, quebrando janelas e rasgando prontuários médicos.
"Falei aos militantes: 'Não vou deixar meu hospital'", contou Abdi. "Disse a eles: 'Se eu morrer, morrerei com meu povo e com minha dignidade'".
Os militantes, que eram membros de um dos mais temíveis grupos militantes islâmicos da Somália, puseram Abdi sob prisão domiciliar nos cinco dias seguintes e fecharam o hospital, levando duas dúzias de crianças subnutridas a morrer no mato, depois de suas famílias fugirem do complexo. Então, ocorreu um fato extraordinário. Centenas de mulheres do campo de refugiados das terras de Abdi fizeram um protesto, somando suas vozes a uma enxurrada de condenações vindas de somalis no exterior e obrigando os militantes a recuar.
A Somália está em guerra com ela mesma há 20 anos. O sistema de atendimento médico foi demolido, assim como boa parte do país. Mas Hawa Abdi vem persistindo há décadas. Com suas filhas, também médicas, ela essencialmente administra uma pequena cidade. E, em lotes de terra de sua propriedade, está organizando famílias para operarem fazendas, além de ter comprado barcos pesqueiros para ajudar a alimentar os refugiados do campo.
Eliza Griswold, que escreveu sobre o complexo em seu livro "The Tenth Parallel", disse: "A dra. Hawa e suas filhas construíram uma cidade de cura no meio do caos brutal da guerra".
Hawa Abdi conquistou reconhecimento mundial. Ela e suas filhas, Amina e Deqa, foram incluídas pela revista americana "Glamour" em seus prêmios Mulher do Ano de 2010. A revista descreveu Abdi como "metade Madre Teresa, metade Rambo".
Recentemente, Abdi teve um tumor benigno retirado do cérebro. Ela diz que está melhor, mas cansada. No entanto, o trabalho continua, e Abdi pretende retornar a ele em alguns meses. "Não posso fugir para me salvar", explicou.
Hawa Abdi vem de uma geração diferente de somalis, geração que teve oportunidades. Quando tinha 17 anos, recebeu uma bolsa para estudar medicina ginecológica em Kiev, na atual Ucrânia. Era a única mulher entre 91 estudantes somalis.
Seu sonho de tornar-se médica nasceu quando tinha 12 anos e viu sua mãe morrer no parto. Quando retornou à Somália, ela trabalhou para hospitais do governo, casou-se e teve duas filhas e um filho, que morreu em um acidente de carro em 2005.
Em 1983, Abdi abriu uma clínica para mulheres, com um cômodo só, em um terreno pertencente a sua família, e começou a fazer partos de mulheres nômades. Abdi disse que o presidente somali da época, Mohammed Siad Barre, a autorizou pessoalmente a fazer o trabalho.
A clínica, que começou com um cômodo, vem crescendo sem parar. Hoje, o Hospital Hawa Abdi tem 400 leitos, três salas de cirurgia, seis médicos, 43 enfermeiros, uma escola com 800 alunos e um centro de educação de adultos.
Há anos, a própria Hawa Abdi realiza procedimentos cirúrgicos, desde cesáreas até a extração de fragmentos de balas, mas as cirurgias se encontram suspensas por causa da destruição provocada pelo ataque dos militantes. Sarampo, malária, diarreia, epilepsia, tuberculose e, especialmente, desnutrição grave, uma ameaça à sobrevivência, são os problemas que a médica enfrenta diariamente, contando com equipamentos e remédios que estão longe de serem suficientes.
Ao longo dos anos, uma verdadeira cidade surgiu em volta do hospital de dois andares: 90 mil refugiados que vivem em barracas no formato de bolhas, feitas de paus e lonas de plástico. O campo é visto como um dos poucos lugares seguros no sul da Somália. O atendimento médico é gratuito, financiado por doações.
O refúgio seguro é protegido por alguns guardas de segurança e algumas normas muito importantes. Uma delas: nenhum homem pode espancar sua mulher. O lugar chega a ter um depósito que, quando necessário, faz as vezes de cadeia.


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