São Paulo, segunda-feira, 12 de outubro de 2009

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Polícia indiana é questionada por aplicar "justiça" mortal

Por LYDIA POLGREEN

AHMEDABAD, Índia - O quadro era tão improvável quanto terrível. Os corpos crivados de balas de quatro muçulmanos estavam deitados no meio da rua. Um deles segurava uma metralhadora. Substâncias químicas para fabricar bombas e uma mala cheia de dinheiro estavam no porta-malas de seu carro. Relatórios da Inteligência tinham identificado os quatro como suspeitos de terrorismo.
Era uma cena do crime clara, com uma história combinando: quatro extremistas islâmicos que planejavam assassinar o poderoso ministro-chefe do Estado mais rico da Índia foram contidos por um intrépido grupo de policiais em 15 de junho de 2004. Os oficiais foram saudados como heróis.
Mas a história era boa demais para ser verdade, segundo um relatório da justiça recém-divulgado. Os supostos militantes incluíam uma estudante de 19 anos, chamada Ishrat Jehan, que não tinha ligações evidentes com grupos terroristas, segundo o magistrado. A evidência forense mostrou que os quatro não tinham morrido em um tiroteio: foram assassinados à queima-roupa, muito antes do que a polícia havia dito. Nenhum deles tinha realmente disparado uma arma. Haviam sido mortos a sangue frio, segundo o juiz.
O caso alimentou um acalorado debate nacional sobre a antiga prática da polícia indiana de matar suspeitos. Conhecidas de maneira eufemística como "mortes em confrontos", essas execuções extrajudiciais foram toleradas e até comemoradas como método para lidar rapidamente com o crime em um país que tem um Poder Judiciário notoriamente lento e às vezes corrupto. Nesses casos, um oficial invariavelmente "confronta" um suspeito e o mata, supostamente em defesa própria.
Em cidades como Mumbai, que durante décadas foi dominada por violentos sindicatos do crime organizado, os policiais que mataram figuras notórias das gangues eram muitas vezes tratados heróis populares, realizando de maneira altruística o negócio sujo de dispensar a justiça. Esses oficiais, conhecidos como especialistas em confrontos, tornaram-se celebridades e até se gabavam do número de bandidos que tinham matado.
Mas os indianos tornaram-se cada vez mais desconfiados de policiais que faziam as vezes de juiz, júri e carrasco. Desde 2006, 346 pessoas foram mortas no que parecem ser execuções extrajudiciais, segundo a Comissão Nacional de Direitos Humanos.
Em muitas dessas mortes, segundo revelaram as investigações, o motivo não era cumprir a justiça. A polícia muitas vezes encenava essas mortes visando ganhos pessoais: apagar o adversário de um político poderoso na esperança de uma grande promoção; matar um chefe criminoso a pedido de um de seus rivais; acertar contas entre empresários.
No Estado de Gujarat, essa prática terrível assumiu uma forma ainda mais sinistra. Segundo documentos da Justiça, advogados, ativistas de direitos humanos e as famílias das vítimas, policiais que desejavam atrair os favores do ministro-chefe do Estado, Narendra Modi, começaram a matar pequenos criminosos muçulmanos e exibi-los como grandes terroristas dedicados a assassinatos em massa. Não há evidências de que Modi incentivava essas execuções.
Em Gujarat, a equipe de oficiais suspeitos de realizar essas matanças geralmente escolhia cuidadosamente suas vítimas. Nos cinco casos pendentes nos tribunais até agora, os principais alvos tinham passados suspeitos, confirmados por uma prisão ou condenação, geralmente por um crime menor. A maioria era muçulmana.
Mas na morte de Jehan essa fórmula falhou. Ela dificilmente se encaixava no perfil habitual das vítimas de "confronto". Era uma estudante do ensino médio em tempo integral que também trabalhava para ajudar sua mãe viúva e os seis irmãos.
Segundo sua família, ela estava viajando com seu patrão para ajudá-lo a montar uma firma de marketing. Em 15 de junho, ela foi morta, segundo a polícia, juntamente com seus cúmplices quando tentavam escapar da captura. Mas o relatório do juiz de Gujarat destruiu essa alegação. O alimento encontrado no estômago das vítimas provou que elas tinham sido mortas muito antes, segundo o documento. Seus ferimentos indicavam tiros à queima-roupa. Suas mãos não mostravam vestígios de pólvora. A polícia havia plantado armas nas vítimas e encenado o crime.
As autoridades de Gujarat rejeitam o relatório do juiz, e a Suprema Corte do Estado impediu que as autoridades prendessem os policiais citados enquanto o tribunal realiza um inquérito. Um relatório da Inteligência do governo disse que os quatro eram possíveis suspeitos de terrorismo, mas o governo central disse que se tratava apenas de suspeitas que não podiam justificar as mortes.
A mãe de Jehan, Shamima Kausar, disse que a acusação de que sua filha era terrorista é ridícula. "Ela era apenas uma estudante", disse, com os olhos cheios de lágrimas. "Era meu braço-direito. Estou perdida sem ela."


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