São Paulo, segunda-feira, 13 de setembro de 2010

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Uma safra de incertezas

Falta de trigo, atribuída a inundações, seca, especulação e proibição de exportações pela Rússia, faz líderes políticos e especialistas agrícolas temerem as consequências

Por CLIFFORD J. LEVY
Moscou
Galina Litviak parou na banca do fim da rua, percorreu os supermercados próximos e perguntou às amigas.
Ninguém sabia onde encontrar. Em todo o bairro de classe média onde ela vive as lojas estavam abarrotadas, com um amplo sortimento de produtos, refletindo o quanto Moscou mudou nas últimas duas décadas. Com uma exceção.
A Grande Escassez do Trigo Sarraceno de 2010 não dá trégua.
Como se não bastasse o calor brutal, os incêndios florestais e a seca deste verão, o país agora sofre mais um drama ligado ao clima, a falta de um alimento adorado, o que lança a Rússia numa espécie de dobra temporal. Russos, como a contadora aposentada Litviak, 72, estão retomando o velho hábito comunista de comprar o que há. E não estão gostando nada disso.
"Não consigo mais encontrar o trigo sarraceno em lugar algum, e se encontrasse seria caro demais para mim", disse ela ao entrar no hipermercado Perekrestok ("cruzamento"), de onde novamente sairia frustrada.
"Fui de loja em loja, perguntava quando o trigo sarraceno vai chegar, e eles diziam: 'Não sabemos, é por causa do calor, ou por causa da seca, ou algo assim'."
Tais queixas podem parecer banais, mas as autoridades as levam muito a sério. Desde a época dos czares, o descontentamento popular com a escassez de produtos -seja farinha, salsicha, sal ou vodca- costuma causar instabilidades políticas na Rússia.
Os russos comem trigo sarraceno o dia inteiro, transformado em cereal quente no café da manhã, em guarnição para carne, em recheios, panquecas e vários outros pratos. Privá-los disso prolongadamente pode causar uma reação feroz.
O presidente Dmitri Medvedev tem abordado a escassez de trigo sarraceno em visitas a centros provinciais, tentando assegurar ao país que o governo está trabalhando para aliviar o problema.
Ele alertou que as autoridades vão reprimir quem manipular o mercado do trigo sarraceno.
A safra do trigo sarraceno foi sem dúvida afetada pela seca, que deve reduzir em cerca de um terço a produção geral de grãos.
Mas funcionários do Kremlin e em instâncias inferiores insistem que há quantidades suficientes de trigo sarraceno disponíveis para os consumidores russos, especialmente agora que o governo proibiu as exportações de grãos pelo menos até 2011, a fim de estabilizar o mercado doméstico.
Então as suspeitas recaem sobre as compras motivadas pelo pânico, o acúmulo de estoques a e especulação -práticas que também remontam aos tempos soviéticos.
"Precisamos reduzir essas compras por pânico, inclusive explicando o que está ocorrendo", afirmou Medvedev.
"Muitas pessoas, especialmente os idosos, se lembram de que, se algo está desaparecendo, é preciso comprar imediatamente, porque mais tarde não haverá", completou.
Antes do verão, o trigo sarraceno habitualmente custava cerca de US$ 1 por quilo em Moscou. Agora, custa US$ 2 ou mais, quando é encontrado.
O trigo sarraceno não é tão central na dieta russa quanto o trigo comum, mas é considerado um alimento mais tipicamente russo, por ser uma planta robusta que floresce nas estepes siberianas.
Gerações de crianças foram criadas com esse alimento, que é valorizado por seus nutrientes e consumido às toneladas nas merendas escolares. No Leste Europeu, ficou conhecido como "kasha".
"Para muitos russos, esse é o problema número 1 atualmente: onde conseguir trigo sarraceno?", questionou Oksana Sidneva, 32, que também fazia compras no Perekrestok.
Seu filho Dima, 13, entrou na conversa. "É o único cereal cozido que eu como", disse.
A escassez é especialmente intrigante porque os super e hipermercados de Moscou e de muitas outras regiões metropolitanas têm praticamente todo o resto.
A economista e analista Irina Iasina disse que a escassez de trigo sarraceno demonstra como os russos preservam cicatrizes das dificuldades do passado.
"A reação a isso é absolutamente soviética -é um clássico pânico ao estilo soviético", disse.
"Lembre-se, faz só 20 anos do colapso soviético. Tenho 46 anos. Há 20 anos vivo em condições normais.
Mas no resto do tempo vivi sob condições de total escassez. E os hábitos adquiridos durante a infância são mais fortes do que quaisquer outros. Isso vira quase um reflexo."
Mas nem todos demonstram preocupação. Alguns idosos lembram que a experiência soviética os dotou de outra característica: o estoicismo.
"Vivi a Segunda Guerra Mundial, quando não tínhamos nada para comer, somente duas batatas por dia", relembrou a professora aposentada Valentina Novikova, 74.
"Na década de 1980, havia essa escassez, ficávamos nessas filas. Então se há escassez de trigo sarraceno -bom, isso não faz sentido. Já passamos por isso, e vamos passar desta vez", finalizou.


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