São Paulo, segunda-feira, 16 de maio de 2011

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ENSAIO
JOHN F. BURNS

A busca pelo 'graal maldito' Bin Laden

No que se relaciona a oportunidades de reportagem, poucas terão sido mais espetacularmente frustradas do que a que cruzou meu caminho em um dia distante de primavera na antiga Província da Fronteira Noroeste do Paquistão. Era 1989. O local era uma sala lotada em um campo de treinamento improvisado para militantes árabes no interior próximo a Peshawar, cidade de fronteira que foi o palco onde os mujahedins fizeram com que as tropas soviéticas se retirassem do Afeganistão no início daquele ano.
Ao fundo, estava sentado um homem alto de barba crespa, 30 e poucos anos, silencioso, de rosto duro e, segundo sua linguagem corporal, visivelmente perturbado pela intrusão do repórter. Seu nome, eu soube depois por um oficial da agência de inteligência militar do Paquistão, a Diretoria de Inter-Serviços de Inteligência (ISI), era Osama bin Laden. Não falei com ele nessa única visão em primeira mão que tive do homem, cujos atos terroristas assassinos -e cujo êxito em escapar por tanto tempo da maior caçada humana da história- deveriam reconfigurar a história de nossa era.
Para mim, assim como para muitos correspondentes estrangeiros, Bin Laden se tornaria uma figura obsessiva, uma espécie de graal maldito, assim como foi para os comandos americanos que o perseguiram. Um punhado de repórteres conseguiu entrevistá-lo depois do meu encontro. Mas nenhum o veria depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, quando sua figura só apareceria nos vídeos contrabandeados que se tornaram seus sermões -e, hoje, seu epitáfio.
Mesmo sem ser visto, porém, o homem e sua causa foram revelados de todas as maneiras para os que o perseguiram. Minha própria jornada incluiu um momento de heureca no antigo bazar da capital do Iêmen, Sanaa, em agosto de 2001, quando visitei uma loja de vídeo especializada em jihad, e, de baixo do balcão, apareceu um conjunto de fitas recém-chegadas que incluíam horas de Bin Laden falando para seguidores da Al Qaeda no Afeganistão.
Depois de passar dias debruçado sobre os vídeos com um professor que falava árabe em Londres, encontrei uma cena do início de 2001 em que o líder da Al Qaeda, emoldurado por um céu de anil e com a túnica branca esvoaçante de um antigo profeta, falava para um grande grupo que parecia incluir futuros homens-bombas, saudando o julgamento final que esperava a América. Incluí esse fato em um artigo que escrevi alguns dias antes do 11 de Setembro, quando seu significado iminente ainda não era claro. A matéria ficou à espera na editoria de exterior do Times antes do 11 de Setembro e, afinal, não foi publicada no jornal.
Hoje, com Bin Laden morto, a pergunta incômoda é se ele se tornará um ícone para a Al Qaeda e seus afiliados. Ou, com sua liderança extinta, o movimento se tornará irrelevante entre as correntes democráticas que hoje inspiram a Primavera Árabe.
Enquanto os EUA tentam derrotar a militância islâmica, muitos líderes paquistaneses estão convencidos de que seu jogo deve se prorrogar. Lembrando como os EUA abandonaram o Afeganistão depois da retirada soviética, esses paquistaneses acreditam ser de seu interesse proteger suas apostas sobre quem afinal vai dominar Cabul e Kandahar.
Talvez mais premente em suas implicações para as relações dos EUA com o Paquistão, a guerra no Afeganistão e a luta com a Al Qaeda, há outra questão: se o ISI sabia que Osama estava escondido -por até cinco anos, como sua esposa ferida teria dito a interrogadores paquistaneses- em Abbottabad, que é uma das principais guarnições do Exército paquistanês.
Tirar sentido da confusão de justificativas das autoridades paquistanesas é missão para tolos. Algumas disseram que a presença de Bin Laden em Abbottabad apanhou de surpresa a comunidade de segurança do país; outros, incluindo pelo menos dois ex-chefes da ISI, dizem que é inconcebível que a agência de espionagem nada soubesse. Outros ainda disseram que o sucesso de Bin Laden em esconder-se em uma cidade no interior do Paquistão foi resultado dos erros básicos do Paquistão ou, ao contrário, pode ser atribuído à decisão americana de não compartilhar com o Paquistão as informações que levaram a identificar Abbottabad.
A dupla atuação do Paquistão é quase incontestável. O país absorveu mais de US$ 20 bilhões de ajuda americana e ocidental desde o 11 de Setembro, um reforço crucial para sua frágil economia, mas esteve "olhando para os dois lados", segundo o premiê britânico, David Cameron, sobre o terrorismo disseminado em seu território e no Afeganistão. Uma informação divulgada pelo WikiLeaks sobre relatórios militares ofereceu evidências do papel do ISI como patrono do Taleban e da Al Qaeda. Enquanto poucos imaginariam que sua cumplicidade chegasse ao ponto de abrigar Bin Laden, a confiança no Paquistão como aliado, há muito tempo, é questionada em Washington.
No Ocidente, a abordagem paquistanesa é considerada errônea e autodestrutiva. Mas ela tem mais que uma vaga ressonância com a antiga disposição dos EUA a apoiar o jihadismo na guerra fria, quando a derrota soviética no Afeganistão era uma questão existencial para Washington. De muitas maneiras, foi o que ocorreu no Paquistão, ao moldar seu próprio relacionamento com os jihadistas.
Ultimamente, há menos cartazes de Bin Laden nas vitrines do mundo árabe, sugerindo que esses sentimentos são menos intensos do que foram na maior parte dos últimos 20 anos, especialmente com os êxitos da Primavera Árabe e o caminho para a renovação árabe. Mas se o Ocidente não abordar a raiva que Bin Laden articulou de modo mais forte e violento do que qualquer outro líder muçulmano, sua lenda poderá persistir, e não apenas entre os despossuídos.
Uma medida disso, para mim, foi um jantar pouco depois do 11 de Setembro em Islamabad, no qual muitos convidados paquistaneses eram generais na ativa ou aposentados. Enquanto o uísque corria, as línguas se soltaram, e as opiniões tornaram-se desconfortáveis. Os atentados de 11 de Setembro, disse um homem, haviam "dado uma lição aos americanos". A mulher de um oficial provocou murmúrios de assentimento quando disse: "Os EUA mereceram".
Com essas atitudes, não seria tão estranho que Bin Laden escolhesse como santuário a cidade-forte de Abbottabad, onde pode ter pensado que pessoas poderosas estivessem dispostas a olhar para o outro lado.


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