São Paulo, segunda-feira, 17 de agosto de 2009

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A coisa vai esquentar

Aquecimento traz riscos à segurança

Estudos anteveem crises humanitárias e militares globais

Rainer Schwenzfeier/Reuters
Pegadas de elefantes no leito seco do lago Banzena, no Mali; analistas alertam para conflitos provocados pelo aquecimento global

Por JOHN M. BRODER
Washington
A mudança climática global apresentará profundos desafios estratégicos nas próximas décadas, gerando a perspectiva de intervenções militares para lidar com os efeitos de tempestades, secas, migrações em massa e pandemias, segundo analistas militares e de inteligência.
Tais crises climáticas poderiam derrubar governos, estimular movimentos terroristas ou desestabilizar regiões inteiras, dizem esses analistas, especialistas do Departamento de Defesa dos EUA e de agências de inteligência que pela primeira vez estão examinando seriamente as implicações da mudança climática para a segurança global.
Recentes estudos e simulações concluíram que, nos próximos 20 a 30 anos, regiões vulneráveis, particularmente a África subsaariana, o Oriente Médio e o sul e o sudeste asiático, podem enfrentar escassez alimentar, crises hídricas e inundações catastróficas, eventualmente exigindo ajuda humanitária ou reação militar por parte dos EUA.
Um exercício em dezembro na Universidade Nacional de Defesa dos EUA explorou o possível impacto de uma inundação destrutiva em Bangladesh que mandasse centenas de milhares de refugiados para a vizinha Índia, desencadeando um conflito religioso, a difusão de doenças contagiosas e vastos danos à infraestrutura.
"Ficaria realmente complicado, bem rápido", disse Amanda Dory, subsecretária-assistente de Defesa para estratégia, que colabora com um grupo do Pentágono encarregado de incorporar as mudanças climáticas no planejamento estratégico da segurança nacional.
Grande parte do debate acerca do aquecimento global está voltada à busca de substitutos aos combustíveis fósseis, à redução das emissões de gases do efeito estufa e ao aprofundamento de negociações que levem a um tratado climático internacional -mas não à potenciais desafios para a segurança.
Porém, um crescente número de formuladores de políticas afirma que o aquecimento, a elevação dos mares e o derretimento das geleiras são uma ameaça direita aos interesses dos EUA.
Defensores dessa tese dizem que, se os norte-americanos não liderarem o mundo na redução do consumo de combustíveis fósseis e, portanto, da emissão de gases do efeito estufa, haverá uma série de crises ambientais, sociais, políticas e possivelmente militares a serem urgentemente enfrentadas.
Este argumento pode pesar no debate de setembro no Senado americano, quando será discutida a legislação climática e energética aprovada em junho na Câmara.
O democrata John Kerry, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, disse que pretende usar essa questão para obter a aprovação de uma lei significativa. "Tenho apresentado este argumento há alguns anos", disse ele. "Mas não tem sido esse o foco, porque muita gente não havia ligado os pontos."
Kerry afirmou que o conflito no sul do Sudão, que já matou ou desalojou dezenas de milhares de pessoas, foi resultado da seca e da desertificação no norte. "Isso irá se repetir muitas vezes e em muito maior escala", disse ele.
A avaliação do Departamento de Defesa ocorre depois de o Congresso pressionar pela inclusão das questões climáticas nos planos estratégicos. Os modelos climáticos do Departamento se baseiam em sofisticados programas meteorológicos da Marinha e da Força Aérea dos EUA, além de pesquisas climáticas da Nasa (agência espacial) e da Noaa (agência oceânico-atmosférica).
O Pentágono e o Departamento de Estado há anos estudam questões relativas à dependência de fontes energéticas estrangeiras, mas só agora estão levando em conta os efeitos do aquecimento global em seu planejamento de longo prazo.
Um clima em mutação constitui diversos desafios aos militares. Muitas das suas instalações críticas estão em risco devido à elevação dos mares e a maremotos. Um dos locais vulneráveis é Diego Garcia, um atol no oceano Índico, a cerca de um metro de altitude, que serve de centro logístico para as forças britânicas e norte-americanas no Oriente Médio.
O degelo do Ártico também gera novos problemas aos militares. O encolhimento da calota polar, que ocorre num ritmo mais acelerado do que se previa há poucos anos, abre um canal de navegação que precisa ser defendido e expõe recursos submarinos que já são foco de disputa internacional.
Dory, que ocupa cargos importantes no Pentágono desde o governo Bill Clinton (1993-2001), disse que desde o ano passado tem notado grandes avanços no pensamento militar a respeito da mudança climática. "Essas questões agora têm de ser incluídas [nas estratégias de segurança nacional] e confrontadas", disse ela.
O Conselho de Inteligência Nacional terminou no ano passado sua primeira avaliação das implicações da mudança climática para a segurança dos EUA. Ele concluiu que a mudança climática por si só teria impactos geopolíticos significativos no mundo todo e contribuiria com diversos problemas, inclusive a pobreza, a degradação ambiental e o enfraquecimento de governos nacionais. As tempestades, secas e crises alimentares resultantes do aquecimento planetário nas próximas décadas criariam numerosas emergências humanitárias, alertou o relatório.
"As demandas dessas potenciais reações humanitárias podem onerar significativamente o transporte militar e as estruturas das forças de apoio, resultando em uma sobrecarga e numa profundidade estratégica reduzida para as operações de combate", disse o texto.
A comunidade de inteligência prepara uma série de relatórios sobre o impacto da mudança climática em países como China e Índia, um estudo sobre combustíveis alternativos e um exame de como as relações entre as grandes potências podem ser abaladas pela mudança climática.
"Pagaremos por isso de uma forma ou de outra", escreveu o general reservista Anthony Zinni, num recente relatório que ele preparou como membro do conselho consultivo militar para questões energéticas e climáticas do CNA, entidade privada que faz pesquisas para a Marinha americana. "Vamos pagar para reduzir as emissões de gases-estufa hoje, em um golpe econômico de algum tipo. Ou pagaremos o preço mais tarde em termos militares. E isso envolverá vidas humanas."


A coluna Inteligência retornará na próxima semana



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