São Paulo, segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

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A ERA BUSH

Filosofia da Casa Branca estimulou crise imobiliária

Por JO BECKER, SHERYL GAY STOLBERG e STEPHEN LABATON

WASHINGTON - O sistema financeiro global já estava à beira do colapso quando o presidente George W. Bush e sua equipe econômica lotaram o Salão Roosevelt da Casa Branca para uma reunião que, nas palavras de um participante, "deixou todo o mundo apavorado".
Era 18 de setembro. O Lehman Brothers acabara de falir, soterrado por hipotecas "tóxicas". O Bank of America engolira o Merrill Lynch numa venda arranjada às pressas. Dois dias antes, Bush havia decidido injetar US$ 85 bilhões na falida gigante dos seguros AIG.
"Como viemos parar aqui?", perguntou ele naquela reunião.
Oito anos depois de chegar à Casa Branca prometendo difundir o sonho da casa própria, Bush deixa o cargo, como definiu recentemente, "diante da perspectiva de um derretimento global", cujas raízes estão no mesmo setor imobiliário que ele tanto defendeu.
Há muitos culpados, como as instituições que venderam crédito fácil, os consumidores que assumiram hipotecas que não conseguiriam pagar e os executivos de Wall Street, que embarcaram nos títulos lastreados por hipotecas, apesar dos riscos.
Mas a história de como os EUA chegaram aqui tem em parte o dedo de Bush, a julgar por entrevistas com dezenas de atuais e ex-funcionários do governo.
Desde seus primeiros dias no cargo, Bush aliou sua crença de que os americanos se saem melhor quando têm casa própria com a sua convicção de que os mercados se saem melhor quando deixados à vontade.
O presidente se empenhou para ampliar a propriedade imobiliária, especialmente entre minorias. Mas suas políticas habitacionais e a falta de regulamentação incentivaram padrões relaxados de crédito.
Durante muito tempo, o governo Bush ignorou os alertas de que o preço dos imóveis estava inflado e que uma onda de despejos seria iminente. E, quando a economia se deteriorou, o presidente e sua equipe avaliaram mal a amplitude da crise.
Tanto o atual secretário do Tesouro, Henry Paulson, quanto seu antecessor, John Snow, admitem que o estímulo imobiliário foi longe demais.
"O que esquecemos no processo foi que ele precisa se dar num contexto em que as pessoas consigam pagar pela sua casa", disse Snow. "Agora percebemos que havia um custo alto."
Atualmente, milhões de americanos foram despejados ou estão sob tal ameaça, o percentual de pessoas que vivem em casa própria é praticamente igual ao da época em que Bush tomou posse, os gigantes imobiliários Fannie Mae e Freddie Mac estão sob intervenção federal, e o resgate pode custar trilhões de dólares aos contribuintes.
Promover a casa própria não é novidade nenhuma; o ex-presidente Bill Clinton (1993-2001) também o fez. Quanto a Bush, isso era parte da sua visão de uma "sociedade de proprietários", em que os americanos dependeriam menos do governo para saúde, previdência e moradia.
Mas as estatísticas mostram que, em grande parte do governo Bush, a renda da maioria das famílias permaneceu relativamente estagnada, enquanto o preço dos imóveis disparou. Isso dificultou a aquisição de imóveis por parte de quem não tinha nada.
Por isso Bush teve de, em suas próprias palavras, "usar a musculatura do governo federal" para alcançar seu objetivo. Propôs incentivos fiscais habitacionais. Insistiu que a Fannie Mae e o Freddie Mac cumprissem metas ambiciosas de financiamento para famílias de baixa renda. Pressionou para que mutuários que adquirissem o primeiro imóvel tivessem direito a hipotecas com garantias federais, sem entrada.
Líderes parlamentares republicanos e alguns especialistas reclamaram, argumentando que um mutuário que não tenha feito um investimento inicial ficaria mais propenso a desistir do financiamento. Muitos economistas, inclusive alguns na Casa Branca, agora compartilham dessa tese.
O presidente também confiou nas inovações desenvolvidas por corretores de hipotecas e instituições de financiamento. "Os Estados Unidos corporativos", disse ele, "têm a responsabilidade de trabalhar para tornar os Estados Unidos um lugar com compaixão."
E os Estados Unidos corporativos, de olho em um mercado lucrativo, cumpriram a promessa de formas inesperadas para Bush, com a proliferação, num ambiente fracamente regulamentado, de taxas de juros iniciais boas demais para serem de verdade, e de empréstimos em que o devedor precisava pagar apenas os juros, e não o principal da dívida.
"Este governo tomou decisões que permitiram que o livre mercado operasse como uma briga de bar, e não como uma luta profissional", disse William Seidman, mentor da operação de resgate do setor de crédito na década de 1990. "Para fazer o mercado funcionar bem, é preciso ter muitas regras."
Em 17 de junho de 2002, ao lançar um plano habitacional para minorias, Bush foi a Park Place South, um loteamento num bairro de Atlanta que havia ficado conhecido pela criminalidade e a pobreza. "Parte da segurança econômica", declarou Bush na ocasião, "é ter casa própria".
Agora, a crise das hipotecas afetou pelo menos 10% das 232 casas de Park Place South, segundo a incorporadora Masharn Wilson, anfitriã de Bush naquela visita. "Simplesmente não acho que o que ele anteviu tenha se cumprido", disse Wilson.
Em março de 2007, a New Century, gigante financeira que concedia empréstimos imobiliários de alto risco -os quais estavam por trás de títulos financeiros vendidos em todo o mundo-, se encaminhava para a falência. Jason Thomas, consultor econômico de Bush, foi encarregado de avaliar a situação do setor.
Thomas enviou a altos funcionários da Casa Branca e do Tesouro planilhas demonstrando que o custo mensal de ter um imóvel superava em muito o gasto para alugá-lo. Para ele, isso era um sinal de que o valor dos imóveis estava altamente inflacionado e iria cair, o que poderia desencadear uma crise de inadimplência, quando os mutuários começassem a perceber que suas dívidas superavam o valor de seus imóveis.
Durante o primeiro semestre de 2008, porém, Henry Paulson declarava que "o mercado imobiliário está no fundo ou perto dele", e que o problema estava "em grande parte contido".
Em agosto, o crédito rareava, em meio a questionamentos sobre até que ponto os bancos haviam investido em papéis atrelados a hipotecas. Bush disse que uma ação do governo poderia dificultar a recuperação dos mercados.
Meses se passaram, até que em 2008 o Bear Stearns quebrou, levando o Federal Reserve (Banco Central dos EUA) a maquinar uma venda às pressas.
Em 18 de setembro, quando Bush e sua equipe tiveram o fatídico encontro no Salão Roosevelt, Paulson já alertava para uma calamidade econômica maior que a Grande Depressão. De repente, uma histórica intervenção estatal parecia ser a única opção. Quando Paulson enunciou o que se tornaria um plano de US$ 700 bilhões para resgatar o sistema bancário nacional, o presidente não hesitou.
Não foi a última das intervenções do governo, que desde então saiu em socorro do Citigroup e das montadoras de Detroit.
Bush disse em discurso, no fim de dezembro, no Instituto da Empresa Americana, que se sentia concentrado demais no presente para olhar em direção ao passado. "Ocorre", disse ele, "que este não é aquele tipo de Presidência da qual você apeia ao entardecer, com um aceno de despedida".

"Parte da segurança econômica é ter casa própria"
GEORGE W. BUSH, em Atlanta em 2002

"Este governo tomou decisões que permitiram que o livre-mercado funcionasse como uma briga de bar, e não como uma luta profissional"
L. WILLIAM SEIDMAN, mentor da operação de resgate de crédito na década de 1990



Colaborou Kitty Bennett


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