São Paulo, segunda-feira, 19 de outubro de 2009

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A paz real é furtiva

Repórter do “Times” recorda momento em que a vitória no Afeganistão esteve próxima; parece que faz tanto tempo

Tyler Hicks/Getty Images
Soldado da Aliança do Norte comemora a derrota do Taleban em Cabul, em 2001; questões que Obama hoje luta para resolver já fervilhavam sob a superfície naquela época

Peter Baker
Ensaio

Washington
Do telhado de uma casa de barro com vista para o planalto de Shomali, as explosões brancas à distância, os riscos vermelhos da artilharia e os eventuais estrondos no vale anunciavam o início da guerra norte-americana no Afeganistão. Fomos alertados a não usar lanternas, não acender cigarros nem permitir que o brilho dos nossos celulares por satélite pudesse ser visto, de modo a não atrair disparos do Taleban. A única outra luz visível vinha dos faróis de uma longa coluna de veículos do outro lado do vale, levando civis para longe do bombardeio. Isso foi há oito anos, e em momento algum naquela noite fria, ao vermos a força da nação mais poderosa do mundo se abater sobre o primitivo exército de soldados vestindo trapos e chinelos, nos ocorreu que, tantos anos depois, os EUA ainda estariam tentando descobrir como —ou mesmo se— vencerão. A jornada da montanhosa aldeia de Topdara até os salões da Casa Branca é uma história reveladora sobre os limites do poder e da imaginação. Isso ficou nítido quando Barack Obama ganhou o Prêmio Nobel da Paz, horas antes de se reunir com assessores na Sala de Situação para discutir a escalada de uma guerra que ainda não foi vencida. As lições dos últimos oito anos sugerem que, a despeito da opção que ele fizer e do que pensa o Comitê do Nobel em Oslo, Obama pode muito bem deixar o cargo, dentro de 4 ou 8 anos, sem que haja paz no Afeganistão. Cobrir a guerra desde seus momentos iniciais no Afeganistão até esta conjuntura crítica em Washington é tentar reconciliar uma mixórdia de imagens e impressões, das quais não surgem as respostas fáceis que Obama gostaria de encontrar. Afinal, o presidente dos EUA chegou ao cargo em busca de uma estratégia, apresentou uma, e aí seis meses depois decidiu deixá-la de lado em busca de outra. Ele parece apanhar ideias que têm sido regurgitadas ano após ano, com sucesso limitado. Se fosse simples, é claro que alguém já teria feito.
Talvez isso devesse ter sido óbvio desde o começo, e de certa forma foi. Para os que estávamos sediados em Moscou na época dos atentados de 11 de Setembro, o clichê sobre o cemitério de impérios, ingovernável e inconquistável, não era uma abstração teórica, e sim a história real de vida para uma determinada geração de russos. Não obstante, partimos de Moscou e de outros pontos do globo para o inclemente terreno do Afeganistão para ver se poderia ser diferente.
Um velho helicóptero soviético pilotado por rebeldes afegãos levou alguns de nós de Dushambe, no Tadjiquistão, sobre a majestosa cordilheira do Hindu Kush, até o coração do vale do Panjshir, reduto da Aliança do Norte, que combatia o governo do Taleban em Cabul, ao sul. Outro helicóptero fora abatido naquele dia, ou assim nos disseram, mas chegamos em segurança.
Jornalistas europeus estavam lá, mas levaria dias até que outros norte-americanos aparecessem, e muito mais até que a CIA chegasse —embora jamais a tenhamos visto. Para os não iniciados, era uma cena bíblica, um poeirento quadro de pessoas sofridas, vivendo sem eletricidade, água corrente ou mesmo móveis.
Os oito meses seguintes passados no Afeganistão e Paquistão forneceriam todo tipo de pistas sobre como era intratável a situação na qual os EUA haviam caído de paraquedas. Embora a guerra americana tivesse começado na noite de 7 de outubro de 2001, com o bombardeio ao norte de Cabul, os afegãos já estavam em guerra de forma mais ou menos contínua havia mais de duas décadas.
Num dos primeiros dias no vale do Panjshir, alguns afegãos nos levaram para conhecer um comandante da Aliança do Norte, na linha de frente do seu prolongado impasse com o Taleban. Seu quartel era uma série de casas de barro, com um poço e um par de morteiros de 81 mm cercados por obuses usados.
“Vocês querem ouvir o Taleban?”, ele nos perguntou. Apanhou um rádio ligado por um cabo à bateria de um carro japonês e mudou as frequências, apenas um dia depois de disparar foguetes contra o outro lado.
“Todos os seus amigos estão OK?”, perguntou o comandante rebelde pelo rádio. “Sim, todos os meus amigos estão OK”, respondeu o combatente do Taleban no outro lado.
Eles bateram papo por alguns minutos, antes de desligarem. “Ele era meu amigo”, explicou o comandante rebelde. “Mas agora é meu inimigo.”
A ideia de linhas e definições nítidas não se aplica ao Afeganistão. Nos meses seguintes, muitos dos temas dos últimos oito anos ficariam claros. Havia civis mortos por bombas erráticas dos EUA, intrigas entre os afegãos que ostensivamente eram nossos aliados, e uma causa comum forjada com um inclemente comandante local, que se aproveitou da aposta dos norte-americanos para permanecer na folha de pagamentos deles enquanto travava uma guerra particular pelo controle da sua Província.
O rápido sucesso em erradicar o Taleban do poder em Cabul disfarçou como seria difícil erradicá-lo do Afeganistão. Enquanto a Al Qaeda era um corpo estranho, o Taleban, por mais cruel e despótico que fosse, era parte da cultura. Quando éramos perseguidos por militantes com granadas ou bombardeados tarde da noite, as presunções geopolíticas das capitais ocidentais pareciam remotas.
As perguntas que ouvimos sendo feitas hoje em dia na Sala de Situação não são tão diferentes das que fazíamos há oito anos: quais são os interesses norte-americanos no Afeganistão? Como podem ser alcançados? Quem são nossos amigos e quem são nossos inimigos, e como podemos distingui-los? Será a própria ideia de vitória um conceito fútil? Mas quais serão as consequências de uma derrota?
E talvez a maior pergunta de todas: com a medalha do Nobel encarando-o na Casa Branca pelos próximos três anos, ou talvez sete, será que o pacificador designado acabará percebendo o que significa a paz numa terra que não a tem? Será que ele merecerá o prêmio que já recebeu?


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