São Paulo, segunda-feira, 23 de agosto de 2010

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Estônia pós-URSS tem legião de apátridas

"Russificação" da época soviética tem sido revertida

Por CLIFFORD J. LEVY

TALLINN, Estônia - O principal documento de viagem de Oleg Bessedin se chama "passaporte de estrangeiro" -um lembrete da conflituosa relação dele com seu país, e das explosivas tensões étnicas que persistem em toda a antiga União Soviética, quase duas décadas após o fim do comunismo.
Bessedin, 36, etnicamente russo, nasceu e cresceu na Estônia. Legalmente, porém, ele não é estoniano nem cidadão de lugar algum. Ele está entre os 100 mil apátridas da Estônia, a maioria deles de etnia russa.
"Amo o meu país e fiz muito por meu país", afirmou Bessedin, que trabalha como produtor de TV. "Mas meu país não fez muito por mim."
Ele atribui seu ostracismo às autoridades estonianas, que por sua vez jogam a culpa na bagunça deixada pelos antigos senhores soviéticos.
Seja quem for o culpado, essa fricção é um dos legados da política da URSS de deslocar milhões de pessoas para consolidar o controle do Kremlin sobre tão vasto território. Os países pós-soviéticos constantemente se defrontam com as consequências disso.
As relações entre o governo da Estônia e a sua minoria russa sempre foi tensa. E, se o passado serve de indicação, não é preciso de muito para desencadear distúrbios com repercussões em Moscou e Washington. Ao aderir à Otan (aliança militar ocidental), a Estônia levou a aliança até a fronteira russa -para grande insatisfação do Kremlin.
Em 2007, houve um breve surto de violência na capital Tallinn quando manifestantes de etnia russa protestaram contra a retirada de um memorial de guerra soviético. Mais recentemente, a Rússia tem criticado a Estônia pelo tratamento dado à minoria russa.
Antes de a Estônia ter sido tomada pelos soviéticos, em 1940, sua população era majoritariamente de etnia estoniana.
Nas décadas seguintes, para assegurar a futura lealdade da população, o governo soviético assentou muitos russos na Estônia. Quase metade da população de Tallinn tem o russo como língua materna.
Com a independência, no começo da década de 1990, o governo reverteu a "russificação". Obrigou o uso do idioma estoniano em escolas e órgãos públicos e adotou uma política que deixou gente como Bessedin apátrida: com poucas exceções, a Estônia só concede cidadania às pessoas que a possuíam antes da anexação à URSS, bem como aos seus descendentes.
Não estonianos podem obter a cidadania submetendo-se a um exame do idioma, mas isso é difícil para muitos membros da minoria russa que não sentiram a necessidade de aprender estoniano na época soviética. Cerca de 7,5% dos 1,35 milhão de habitantes do país são apátridas.
Com seus "passaportes de estrangeiro" eles podem entrar em muitos países europeus sem visto, assim como os cidadãos da Estônia, mas tendem a enfrentar mais burocracia. Na Estônia, eles não podem votar em eleições federais nem ocupar certos cargos.
A população de origem russa na faixa dos 30 e 40 anos parece a mais insatisfeita, como se estivesse à deriva entre as culturas. Alguns conseguiram passar pelo processo de obter cidadania. Mas outros se recusaram, em protesto, mesmo que falem estoniano.
"O governo não é pela Estônia, é só contra a Rússia", disse Igor Matrosov, engenheiro de software. "Atualmente, eu poderia me tornar cidadão. Mas fui traído."
O presidente da Estônia, Toomas Hendrik Ilves, defende as regras sobre a cidadania. "Quanto aos exames de língua e história, são exigências em todos os países", disse ele a um jornal russo.
O contra-argumento, naturalmente, é que em outros países essas políticas se aplicam aos imigrantes.
As pessoas de etnia russa que passaram a vida toda na Estônia não são exatamente imigrantes. Mas então são o quê?
"Sentimos que não somos russos -e tampouco somos estonianos", afirmou Vladimir Djumkov, diretor teatral apátrida.
"Estamos presos no meio. E ambos os lados estão se aproveitando de nós."


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