São Paulo, segunda-feira, 23 de agosto de 2010

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Viena abre polêmica com arte norte-coreana

Por MICHAEL Z. WISE

VIENA - Uma grande exposição de arte propagandística da Coreia do Norte provocou críticas e suspeitas desde que estreou na Áustria, em maio. A inauguração ocorreu enquanto as atenções internacionais enfocavam o suposto afundamento pelo Norte de um navio sul-coreano.
Esta é a primeira vez que o Estado totalitário e sigiloso envia um grande número de obras de arte para fora de suas herméticas fronteiras.
Até hoje, as inclinações culturais do país foram conhecidas principalmente por meio de programas de TV com coreografias bizarras e extravagâncias ginásticas realizadas por até 100 mil adultos e crianças.
A exposição, no Museu de Artes Aplicadas, em Viena, dá outra perspectiva de uma distopia em que muitos cidadãos lutam por comida e são submetidos a trabalhos forçados, tortura e outras repressões.
Nas pinturas de tom bizarramente positivo, trabalhadores obedientes irradiam alegria; crianças bem alimentadas riem sob o sol resplandecente.
"Somos as Crianças Mais Felizes do Mundo" é um dos títulos surreais. Uma imagem de 2000 -pouco depois de um período de fome que teria matado 3 milhões de pessoas- mostra o ditador Kim Jong-il levantando a tampa de uma panela em uma cozinha lotada de carnes e frutos suculentos. "O Supremo Comandante Kim Jong-il Profundamente Preocupado com a Dieta dos Soldados", diz a legenda.
"É ético mostrar obras de propaganda de um regime ditatorial?", perguntou um correspondente do antigo bloco oriental à curadora da exposição, Bettina M. Busse, em uma pré-estreia para a imprensa em maio. Busse disse à TV tcheca: "Parece haver uma incompreensão do tema. Estamos interessados em cultura".
O jornal alemão "Die Welt" chamou de "obscena" a exposição, "Flores para Kim Il-Sung" (pai de Kim Jong-il, morto em 1994). O jornal disse que em um "regime de terror" como a Coreia do Norte "não há uma arte visual perceptível segundo qualquer tipo de compreensão aceitável".
O museu está fazendo o possível para não ofender o país convidado. A exposição e o catálogo não contêm qualquer texto crítico. "Está claro que se tivéssemos contextualizado esta exposição, como alguns queriam, ela não teria ocorrido", disse Peter Noever, diretor do museu.
Os próprios norte-coreanos tiveram dificuldade para entender a atração de sua arte. "Houve ansiedades", disse Noever.
"Os norte-coreanos temeram que fosse propaganda contra seu país." Nada foi pago pelo empréstimo das obras.
Enquanto isso, muitos austríacos acusaram Noever de dourar a imagem do regime de Pyongyang. O Ministério das Finanças da Áustria se recusou a fornecer seguro para as obras de arte. "Esta exposição demonstra simpatia disfarçada", disse um porta-voz do ministério.
Noever provocou ainda mais furor com seu ensaio no catálogo da mostra, no qual lamenta que "nossas lentes ideológicas ocidentais obscureçam, ou distorçam totalmente, a visão de outras realidades" e pede que os visitantes do museu "esqueçam as atitudes eurocêntricas e culturalmente imperialistas".
Noever demonstra uma queda por projetos que chamam a atenção. "Noever não é bobo", disse o jornal vienense "Die Presse" sobre a exposição, "mas sim o principal exemplar austríaco do radical chique de esquerda".
Mas muitos especialistas em Coreia acreditam que a exposição pode ajudar a promover o diálogo. "É importante nos envolvermos em projetos culturais com diferentes países, mesmo que não aprovemos o regime", disse Jane Portal, diretora do departamento asiático do Museu de Belas Artes de Boston.
Viena aparentemente conserva uma atração especial para a Coreia do Norte. Durante muito tempo a cidade serviu de base para compras que abasteceram a elite norte-coreana de produtos de luxo, segundo a biografia de um coronel norte-coreano que supervisionou essas compras antes de desertar para a Áustria. No ano passado, a polícia italiana bloqueou um intermediário austríaco que estava comprando dois iates para Kim Jong-il.
O título irônico da exposição em Viena se relaciona ao uso de flores para glorificar a liderança norte-coreana. Um novo tipo de begônia criado em 1988 recebeu o nome de Kimjongilia, em homenagem ao presidente, e é chamada de "flor imortal".
"Os norte-coreanos não percebem a ironia disso", disse Portal sobre o título, e "muitas pessoas que veem a exposição acham que é uma espécie de brincadeira".
Mas ela agregou que se trata da "remanescente" das sociedades totalitárias, "o último bastião desse tipo de pensamento, destinado a desaparecer. Por isso, é importante que seja visto e colecionado para a posteridade".


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