São Paulo, segunda-feira, 25 de abril de 2011

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Iraque se afasta do islã extremista

Por TIM ARANGO

Bagdá
Tariq Harb, que foi um advogado militar no governo de Saddam Hussein e hoje é um advogado constitucional e comentarista de televisão, ficou feliz ao ver o álcool correndo novamente no café ao ar livre da União dos Escritores Iraquianos. Mas muitos outros iraquianos não ficaram. "Estamos combatendo os educadores religiosos, os imames, os pregadores, que são extremistas."
Essa é a luta para definir a democracia emergente no Iraque, e se ela pode equilibrar religião e secularismo. Se a questão do álcool representa algum indício, a iniciativa continua sendo uma obra em progresso.
O Iraque serve como laboratório volátil para testar quão islâmica pode ser uma democracia e vice-versa. Os islâmicos rígidos ainda não venceram, e isso pode indicar algumas lições.
Em janeiro, bares e clubes, incluindo a União dos Escritores, foram objeto de batidas policiais, o que muitos iraquianos consideraram um passo do governo na direção de interpretação mais estrita da lei islâmica. Mas, pouco depois, enquanto começavam os protestos por reformas em outras questões, os "antros da bebida" tiveram permissão para reabrir. Desde então, Bagdá viu surpreendente renascimento da vida noturna.
Não foi o único sinal neste ano sobre o afastamento do islã em direção a uma visão mais abrangente das liberdades pessoais. O novo ministro da Educação reabriu cursos de arte e música que o ministro anterior havia banido. Uma tentativa de exigir que as funcionárias públicas usassem o véu foi bloqueada no Parlamento. Até Moqtada al Sadr, o religioso antiamericano, reagiu à proibição do véu feminino na França com uma declaração que pareceu notavelmente um apoio à tolerância democrática: "Segundo a lei muçulmana, não é obrigatório usar o niqab ou não usá-lo, ambos são aceitáveis".
Uma Constituição com lugares para o islamismo e a democracia não é necessariamente paradoxal. Mas o esforço para encontrar um equilíbrio entre eles causa muitos empurrões e vai testar a força da democracia. Na verdade, tanto o islã como a democracia estão consagrados na Constituição que os americanos ajudaram a escrever seis anos atrás.
Ultimamente, a gangorra se inclinou para longe do islamismo estrito, mas os militantes islâmicos mantêm a opção da violência se seus legisladores não prevalecerem; até hoje, as lojas de bebidas são, frequentemente, atingidas por explosões.
"O grande problema que o Iraque enfrenta não é islã ou democracia, mas divisões no corpo político e no Estado", disse Noah Feldman, um professor de direito de Harvard que assessorou a Autoridade Provisória da Coalizão para escrever a Constituição.
No final de fevereiro, inspirados por levantes árabes em outros países, os iraquianos realizaram seus protestos na Praça Al Tahrir (da Liberdade) em Bagdá. Eles foram atacados por forças de segurança, e os protestos não floresceram em nível nacional. Mas parece que uma acomodação que as autoridades fizeram foi reiniciar a repressão à vida noturna.
A questão das bebidas alcoólicas é apenas um aspecto de como valores islâmicos e seculares podem se chocar. Questões mais graves estão em jogo, como a posição das mulheres, a violência doméstica, o alcance da própria lei e a natureza da punição por violá-la.
Mas o modo como a questão da bebida se desenrola oferece pelo menos uma visão do que poderá estar à frente na mediação do debate mais amplo. "Proibir o álcool não contradiz os fundamentos da democracia", disse o professor Feldman. "Essa é uma questão política de quão islâmico deve ser o Estado." O interessante no Iraque é que "em nenhum outro lugar do Oriente Médio esse é um tema de debates, artigos e votações. Ele deve ser, e é, um tema animado para o debate democrático".
A questão também está sendo discutida dentro de outro trecho do território constitucional: o federalismo. "Nas áreas curdas, ninguém proíbe o álcool", disse Feldman, referindo-se à região do norte. "Nas áreas dominadas pelos xiitas, há um esforço."
Poucas vozes aqui defendem a ideia ocidental de separação estrita entre religião e Estado, e até políticos declaradamente seculares como Ayad Allawi, um xiita que liderou a coalizão influenciada por sunitas à vitória nas eleições parlamentares do ano passado, encontram um papel para o islamismo na política.
"Fé é fé", disse Allawi em entrevista recente. "É algo entre indivíduo e Deus. Eu acho que a inspiração para a Constituição deve vir da cultura da região, e uma parte importante é o islã."
Hoje em dia, porém, as correntes políticas parecem contrariar a conduta islâmica rígida, e a vida noturna na capital tornou-se mais animada e liberal do que muitas pessoas podiam se lembrar. As noites de quinta e sexta-feira são uma longa cena de comemorações embriagadas na Rua Abu Nuwas, um calçadão à beira-rio que leva o nome de um poeta árabe-persa, legendário beberrão, que era gay e gostava de escrever sobre temas que ofendiam os islâmicos rígidos. Então, talvez seja uma pequena medida do progresso do Iraque para se afastar da guerra interna o fato de que os oficiais de um posto de controle na Rua Abu Nuwas pareciam se preocupar mais com bêbados do que com bombas.
"O governo abriu os clubes noturnos e lojas de bebida novamente por causa da dor de cabeça que os manifestantes estão causando", disse um oficial, Salem Abbas. "Em vez de se reunir e criar problemas na Praça Al Tahrir, hoje sempre há lutas entre pessoas embriagadas nas ruas e nos clubes. Precisamos ficar em estado de emergência a noite toda."


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