São Paulo, segunda-feira, 26 de abril de 2010

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INTELIGÊNCIA - ROGER COHEN

A hora de invadir a Islândia

Recebi um bilhete de um amigo no Reino Unido: "Que fim de semana mais estranho! Céu azul sem nuvens, nenhuma trilha de vapor, nenhum ruído de aviões. Passei de carro por uma daquelas placas iluminadas, que dizia: 'Aeroporto de Heathrow -Fechado'". Sim, vivemos um momento de estranheza vulcânica. O vulcão de nome impronunciável, Eyjafjallajokull, causou um dano pronunciado, deixou milhões de pessoas emperradas, custou bilhões. "Apagado pela cinzas" foi a expressão usada em Nova York para descrever quem foi apanhado pela nuvem.
Aquele silêncio britânico tão notável não é uma metáfora ruim para os 6 milhões ou mais de vidas subitamente imobilizadas, os contratos deixados à espera, os produtos embargados. A erupção causou uma suspensão. Da Etiópia, onde eu tinha um amigo que tentava chegar à Europa, a Frankfurt, onde outro foi obrigado a passar várias noites, as vidas ficaram presas em um limbo.
Sei que os catres de hospedarias de aeroporto não são a melhor ideia de diversão. Mas o descanso estimula. Precisa haver um romance -chame-o de "O Parêntese do Vulcão"- a ser escrito sobre os namoros, as epifanias, as descobertas provocadas pelo Eyjafjallajokull da Islândia.
Sei que foi um desastre. Havia menos abacates maduros em Londres. Na última vez em que fui a Bruxelas, ouvi falar que o delicioso camarão cinza usado para rechear tomates é trazido de avião do Marrocos para ser descascado por agricultoras porque retirar as cascas é muito trabalhoso. Pode chorar: aqueles camarões globalizados ficaram presos em algum armazém refrigerado.
Vivemos em um crescente frenesi, uma medida do qual é o poder de um único vulcão dar uma gargalhada gigantesca contra nossa inquietação. Vá para casa, cultive sua horta, é a mensagem da geleira do norte. Enquanto isso, o dilema da Islândia inflama. O que a questão alemã foi para o século 20, a questão islandesa é para o 21.
Não há dúvidas de que essa ilha de 307 mil habitantes, ou cerca de um oitavo da população do Brooklyn, causou mais prejuízo ao Ocidente do que o Irã nos últimos dois anos. O colapso de seus bancos, em 2008, deixou os islandeses devendo cerca de US$ 5,4 bilhões para depositantes britânicos e holandeses; seu vulcão custou somente às companhias aéreas mais de US$ 1 bilhão. O prejuízo per capita causado pela Islândia é imenso: dinheiro embolsado composto com cinzas despejadas.
Em suma, cresce o argumento para se invadir a Islândia, embora eu não saiba de nenhum planejamento do Pentágono para tal missão até agora. (Uma invasão seria uma operação simples. A Islândia não mantém Exército, Marinha ou Força Aérea fixos. A principal complicação é que a Islândia é membro da Otan, e não há precedente de um membro da aliança militar ocidental atacar outro. Mas tampouco há precedente de um membro da Otan causar tantos prejuízos a outros.)
Além de fantasiar sobre uma punição para a Islândia -sem dúvida esses pensamentos são compartilhados pelos 6 milhões de empacados-, estive pensando por baixo das cinzas sobre meu romance favorito, a magnífica história de amor e ruína de Malcolm Lowry, "Debaixo do Vulcão". Às vezes uma bebida é na verdade a única resposta. Certamente, com frequência o era para o herói de Lowry, o atormentado cônsul alcoólico no México:
"Mescal", disse o cônsul.
A sala principal do bar Farolito estava deserta. De um espelho atrás do balcão, que também refletia a porta aberta para a praça, seu rosto olhou silenciosamente para ele, com uma expressão séria e conhecida de premonição.
Mas o lugar não estava silencioso. Estava cheio de ruídos compassados: o tique-taque de seu relógio, de seu coração, sua consciência, um relógio em algum lugar. Havia também um som distante, vindo lá de baixo, de água correndo, de desmoronamento subterrâneo; e além disso ele ainda podia ouvir as amargas e ferinas acusações que havia feito a sua própria tristeza, as vozes como que discutindo, a sua mais alta que as demais, agora misturando-se com aquelas outras vozes que pareciam gritar perturbadoramente, à distância: "Bêbado, bêêêbado, bêêêbadoooo!"
Momentos como o causado pelo Eyjafjallajokull, enquanto durarem, também podem ser uma desculpa para um grande romance ainda não lido -ou não escrito.

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