São Paulo, segunda-feira, 27 de abril de 2009

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ensaio

MATT RICHTELL

Que bom se a literatura fosse uma zona livre de celular...

Conspirando com um namorado distante? Experimente mandar um torpedo. Perdido na floresta/ na natureza/ no mar Jônico? Use o GPS. Um caso de identidade trocada? Consulte o Facebook!
A tecnologia está tornando obsoletos alguns elementos de trama da narrativa clássica: ligações perdidas, comunicações erradas, a incapacidade de ir a um encontro. Esses artifícios não passam no teste de credibilidade quando até os destinos mais remotos têm cobertura wireless. (Aqui é Ulisses; alguém pode ver o caminho para Ítaca? Use a rota "sem sereias".)
Qual o significado da perda para o ato de contar histórias se os personagens, da floresta de Sherwood aos Portões do Inferno, podem se conectar instantaneamente, mesmo que não constantemente?
Muito, e pelo menos parte dele é pessoal. Recentemente terminei meu segundo livro de suspense, ou assim pensava. Quando o enviei para vários amigos bons escritores, recebi esta resposta: o protagonista e sua namorada não podem passar o livro inteiro sem conseguir fazer contato um com o outro. Não na era do celular.
Então comecei a falar com amigos escritores e descobri um fermento de antagonismo contra os equipamentos de comunicação atuais. "Queremos um mundo onde haja distância entre as pessoas; é daí que vêm as grandes histórias", disse Kamran Pasha, escritor e produtor de "Kings", drama do canal de TV americano NBC baseado na história de Davi. Ele diz que mesmo o desenrolar da Bíblia teria sido prejudicado pela conectividade.
No Antigo Testamento, por exemplo, os irmãos de José atiram-no em um buraco. Ele é recolhido pelos negociantes de escravos e levado para o Egito, um desenvolvimento vital na narrativa do Êxodo que é central para o judaísmo. Imagine se, em vez disso, ele ligasse do poço, pedindo ajuda. "É engraçado pensar que, se José tivesse um iPhone, não haveria o judaísmo", diz Pasha.
Hoje devemos "deletar" a tensão que fervilha em centenas de páginas enquanto os personagens se perguntam, por exemplo, o que aconteceu com uma namorada? Certamente Rick Blaine não teria sofrido a dolorosa incerteza de por que Ilsa o deixou esperando na estação ferroviária em Casablanca. (Por que ela não apareceu? Devíamos fugir juntos! Hum, deixe-me checar o e-mail... Está bem, tem sentido. Agora vou ver se a encontro no Google Earth...) E muitos enganos nas comédias de Shakespeare teriam sido desfeitos com uma simples mensagem: "Pode esclarecer se você é homem ou mulher?"
Os filmes de suspense, é claro, há muito se beneficiam da tecnologia, que oferece novas ferramentas de descoberta. Mas a tecnologia também afetou esse gênero. O autor de best-sellers Douglas Preston lembra de um momento no final dos anos 1990, quando ele estava escrevendo com Lincoln Child. Eles tinham uma personagem feminina que era seguida em um beco escuro em Nova York, sem ninguém para pedir ajuda. "Eu disse: 'Lincoln, ela tem um celular'. Preston disse: 'Bem, talvez os leitores não percebam'." Eles deslocaram a cena para o metrô, onde na época não "havia sinal".
Alguns autores estão simplesmente rejeitando a modernidade. M. J. Rose, cujos livros sobre reencarnação são a base para um projeto piloto da TV Fox, pretende ambientar parte de seu próximo livro em 1948, para que possam agir as conexões perdidas e erradas.
"Você perde um trem em 1888 ou mesmo em 1988 e não tem contato com a pessoa que espera na estação do outro lado", ela disse. "Ele pensa que você mudou de ideia, foi sequestrada, não conseguiu escapar... Se você perde um trem em 2009, pega o celular e manda um torpedo: 'Vou atrasar duas horas'."


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