São Paulo, segunda-feira, 27 de julho de 2009

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TENDÊNCIAS MUNDIAIS

ENSAIO

C.J. CHIVERS


Uma testemunha destemida, silenciada pela morte

Natalya Estemirova nos deixou. Seus executores a forçaram a embarcar em um carro, diante de sua casa na Tchetchênia e partiram em alta velocidade na manhã de 15 de julho. Ela conseguiu gritar um aviso de que estava sendo sequestrada, e suas últimas palavras documentam o início dos crimes cometidos contra ela, semelhantes aos crimes que Estemirova documentou contra incontáveis pessoas.
Seus assassinos agiram rapidamente, como se estivessem seguindo ordens. Transportaram-na a um lugar distante, dispararam tiros contra ela e a deixaram na beira da estrada, assassinando-a exatamente da maneira que seus amigos há muito temiam. A bolsa de Estemirova foi deixada ao seu lado. Os assassinos não estavam interessados no que ela continha. O crime tinha outro motivo.
Estemirova era membro essencial do pequeno círculo dos principais investigadores de abusos contra os direitos humanos no Cáucaso -uma mulher de coragem, precisão e calma imensuráveis. Ela trabalhava como pesquisadora para a Memorial, organização de defesa dos direitos humanos que opera em Grozni, capital da Tchetchênia. Para as famílias cujo sofrimento ela trabalhou por aliviar e cujas histórias ela forçou o mundo a contemplar, Estemirova foi sempre a mais resoluta das defensoras.
Para os homens cujos crimes expôs, ela representava um inimigo indecifrável, que eles não eram capazes de dissuadir. Ela vagueava pela arruinada república usando saia, blusa e sapatos de salto alto, sempre de batom, e contemplando com franqueza no olhar, talvez acompanhada por um ligeiro sorriso, tanto os atiradores encapuzados quanto suas vítimas. Estemirova lembrava um pouco uma bibliotecária, pronta a ampliar seu arquivo, documental e cerebral, sobre as verdades da guerra da Tchetchênia. E quem ela achava que era para fazê-lo?
Estamos falando da Tchetchênia, afinal, um mundo de violência tão sinistra que se torna até difícil descrever a situação em um jornal. Essa terra está sob o domínio de vilões. A experiência os ensinou que o medo forçará seus oponentes a ceder. Quem era ela para persegui-los? Por que não era possível convencê-la a desistir? A resposta agora está escrita, embora todos que conheceram Estemirova estivessem cientes do fato há muito tempo: só a morte poderia detê-la.
Resta uma questão sobre sua execução, a mais recente em uma série de homicídios contra aqueles que ainda se dispõem a registrar os horrores da Tchetchênia. Será que o relato do custo humano da violência será interrompido, agora? Sem ela, será que a Tchetchênia, como o Uzbequistão, se tornará um daqueles lugares onde ninguém ousa fazer perguntas inconvenientes de forma aberta?
A Tchetchênia é um pequeno ponto no imenso mapa da Rússia e abriga apenas algumas centenas de milhares de habitantes. Mas ela serve como exemplo dos fatores que propelem as guerras modernas: nacionalismo, petróleo, intolerância religiosa, racismo, tribalismo, códigos de sangue que requerem vingança, combatentes irregulares e unidades militares convencionais indisciplinadas, banditismo escancarado, pobreza, corrupção oficial e, para agravar ainda mais a situação, mercenários islâmicos itinerantes e um governo cuja base é o culto à personalidade.
O escritório de Estemirova se tornou um caleidoscópio do macabro. Por mais que isso pareça improvável, ela servia como um governo de uma mulher só, oferecendo serviços que o governo real não se dispunha a prover. Ela localizava os encarcerados. Procurava sepulturas ocultas. Construía casos contra os perpetradores, mesmo quando descobria, como frequentemente era o caso, que estes vestiam uniformes do governo.
Grozni, a capital, era uma terra arrasada, em termos físicos, morais e psicológicos. Estemirova era quase sobrenatural. Habitava outra Tchetchênia, na qual a dignidade poderia prevalecer. A Rússia caiu no silêncio quanto às guerras. A TV controlada pelo Estado não revelou as constatações de Estemirova. A maioria dos jornalistas russos evitava contato com ela. Na Rússia de Vladimir Putin, ela era uma não pessoa. Mas nada disso serviu para dissuadi-la. Os indícios que descobria eram encaminhados diretamente aos promotores, e Estemirova passava a cobrar investigações. Ao longo dos anos, e de novo nos últimos meses, Estemirova e seus colaboradores foram convocados a reuniões oficiais e ouviram queixas quanto ao trabalho que faziam. A mensagem era clara: basta.
Ela foi convocada a comparecer diante de Ramzan Kadyrov, antigo líder rebelde tornado presidente, chefe de um governo que mantinha centros de tortura nos quais, como mostram os registros de Estemirova, os detentos eram submetidos a espancamentos, chutes, choques elétricos, execuções simuladas, sodomia, queimaduras por tochas de acetileno e, no final, em alguns casos, a execuções reais. E esses casos foram documentados por Estemirova. Praticamente ninguém foi acusado. Agora, Estemirova, a principal investigadora, a mulher que se recusou a parar mesmo quando informada que era hora de silêncio, partiu, eliminada da vida e da Rússia como tantas outras vítimas.


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