São Paulo, segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

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Derretimento revela segredos de geleiras


Mudanças climáticas trazem dádiva aos Andes

Por SIMON ROMERO

LA PAZ, Bolívia - Nos lugares desta cidade onde alpinistas se reúnem em torno de churrasco de lhama e garrafas de cerveja Paceña para trocar histórias sobre aventuras nas montanhas, eles fingem tédio quando a conversa chega ao monte Huayna Potosí, um pico andino escarpado que lança sua sombra sobre La Paz.
"É uma escalada de treino", zomba Julio Choque Alaña, 32, que guia estrangeiros em escaladas das montanhas da Bolívia, com picos mais altos que dos Alpes. Mas o tom de bravata se desfaz quando a conversa trata das descobertas na geleira do Huayna Potosí: fuselagens destroçadas, pedaços de asas e hélices de décadas atrás, e, em novembro, o corpo congelado de Rafael Benjamín Pabón, piloto de 27 anos cujo Douglas CD-6 se chocou contra a face norte da montanha em 1990.
"Quando encontrei o piloto, ele ainda estava amarrado ao assento, dobrado para a frente, como se estivesse dormindo, e alguns cabelos pretos se desprenderam de seu crânio", contou Eulalio González, 49, o alpinista que carregou o corpo mumificado de Pabón para baixo. "Há mais múmias congeladas nos picos que nos cercam", disse. "O derretimento das geleiras vai trazê-las para nós."
A descoberta dos restos de Pabón é uma de uma série que veio à tona nas geleiras e campos de neve do mundo nos últimos anos, à medida que o aquecimento leva o gelo e a neve a derreter, expondo os segredos das geleiras.
No espinhaço dos Andes, durante anos palco de acidentes, as descobertas estão ajudando a resolver mistérios. Cientistas dizem que o recuo do gelo é uma dádiva inesperada para quem anseia por olhar para trás no tempo.
"Parece que a tendência de aquecimento vista em muitas regiões está continuando", disse Gerald Holdsworth, glaciologista do Instituto Ártico da América do Norte, em Calgary, Alberta. "Ainda restam alguns grandes bancos de neve em lugares promissores, além de muitas geleiras de formatos, orientações e tamanhos diferentes, de modo que as descobertas ainda podem continuar por muito tempo."
Algumas descobertas acrescentaram pistas interessantes à história das migrações humanas, da dieta, da saúde e das origens étnicas, disse María Victoria Monsalve, patologista da Universidade da Columbia Britânica.
Ela disse que algumas das descobertas mais valiosas dos últimos anos incluem três múmias de crianças incas encontradas no pico do monte Llullaillaco, no norte da Argentina, e um homem congelado de 550 anos atrás encontrado por caçadores de carneiros no norte da Colúmbia Britânica. Múmias mais recentes também podem enriquecer o registro histórico. Em 2004, foram encontrados nos Alpes italianos os corpos bem conservados de três soldados em um local que foi palco de combates na Primeira Guerra Mundial.
Para a família de Rafael Pabón, a descoberta do corpo foi um alívio. Sua mãe, Yolanda Galindo de Pabón, 69, passara duas décadas atormentada com a dúvida sobre o que acontecera.
A descoberta pelo menos pôs fim a elas.
"Agora temos um corpo", disse. "Eu já posso visitar meu filho em seu túmulo e chorá-lo, como é o direito de qualquer mãe."
Alpinistas falam em tom de reverência das geleiras que guardam destroços de aviões de décadas atrás. Conscientes do que aconteceu em vários casos com quem ousou desafiar os picos da Bolívia, alguns guias se referem às montanhas, em tom de reverência, como "acachila", uma palavra da língua indígena aimará que pode ser traduzida aproximadamente como "espírito da terra" ou "tio".
"Os tios guardam muitos segredos", disse González, "assim como os cemitérios sob a sombra deles."


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