São Paulo, segunda-feira, 31 de maio de 2010

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Explosão em Bagdá arruína tesouro cultural

Por ANTHONY SHADID
BAGDÁ - O boletim de ocorrência policial de número 25, datado de 4 de abril e redigido pelo coronel Qais Hussein, foi sucinto e frio -o relato anônimo de uma explosão ocorrida em uma cidade onde explosões fazem parte do cotidiano.
"Danos materiais: importantes", diz o boletim, aludindo ao carro-bomba detonado no mês passado perto da Embaixada do Egito, matando 17 pessoas. "Queimados dez carros + uma casa situada de frente para a embaixada, com danos moderados a dez casas adjacentes."
O boletim do coronel Hussein não mencionou as centenas de livros, incluindo peças de Tchekhov e romances do escritor palestino Ghassan Kanafani, guardados em sacos, caixas e no vão de uma escada.
Não citou os quadros de Shaker Hassan, um dos maiores pintores iraquianos, ou as esculturas de seu compatriota Mohammed Ghani Hikmat. Não foi mencionada a pedra trazida de Belém, cidade de nascimento de um exilado, para ajudar a erguer a casa como refúgio e ponto de união de Ocidente e Oriente.
O boletim do coronel Hussein tampouco mencionou que a casa pertenceu a Jabra Ibrahim Jabra, renomado romancista, poeta, pintor, crítico e tradutor árabe que a construiu entre as tamareiras e amoreiras da rua das Princesas, quase meio século atrás, e que ali viveu até sua morte, em 1994.
Não houve memoriais a Jabra, e as homenagens foram poucas. Como disse o crítico Fadhil Thamer, "as pessoas daqui [Bagdá] já viram demais".
Mas, nos sussurros de amigos e colegas que recordaram como Jabra ouvia Bach enquanto escrevia, com o aroma de seu cachimbo percorrendo o ambiente, a casa representou algo muito maior do que aquilo que se perdeu.
Para eles, a destruição da casa é uma espécie de epitáfio, marcando o final de eras no Iraque e no mundo árabe e o eclipse, em meio à guerra, do ideal que ele representou.
Nascido em uma família cristã em 1919, Jabra fixou-se em Bagdá após a guerra de 1948 que os palestinos descrevem como a "nakba", ou catástrofe.
Ele já tinha se diplomado na Universidade Cambridge, iria estudar pouco depois na Universidade Harvard, e, nos anos seguintes em Bagdá, uniu-se ao escultor Jawad Salim e a uma geração notável de outros artistas que fizeram do Iraque um país pioneiro na cultura árabe.
Jabra esteve entre os mais destacados desses artistas. Foi um escritor cuja obra aclamada modernizou o romance árabe e um linguista que traduziu obras como os sonetos de Shakespeare e "O Som e a Fúria", de William Faulkner.
"Ele foi um exemplo vivo do processo de tradução, de pegar uma cultura e literalmente carregá-la para o outro lado de um abismo cultural, colocando-a em outra cultura", disse Roger Allen, professor de língua e literatura árabes na Universidade da Pensilvânia. Allen foi amigo de Jabra e ajudou a traduzir dois de seus romances.
A casa de Jabra, um sobrado simples ladeado por laranjeiras com perfume palestino, refletia seus gostos. Hikmat recordou que Jabra tinha uma das esculturas de madeira dele (Hikmat) sobre sua lareira e outras na entrada e na sala de jantar.
O crítico e amigo Majed al Samarrai recordou pinturas de artistas iraquianos como Rakan Dabdoub, Souad al Attar e Nouri al Rawi que Jabra tinha na casa.
"Como posso descrever?", disse Samarrai. "A casa era uma galeria de arte iraquiana."
Quando Jabra morreu, em 1994, uma parente dele, Raqiya Ibrahim, foi viver na casa. Samarrai se recorda de ter dito a ela: "Os tesouros de Jabra estão em suas mãos".
O corpo de Ibrahim passou um dia soterrado nos escombros até ser retirado por funcionários da defesa civil.
Uma bandeira negra foi hasteada do lado de fora, em sinal de condolências por ela e seu filho, Jaafar, também morto na explosão. "De Deus viemos e a ele retornamos", diz a bandeira.
Samarrai acredita que uma coleção de 10 mil cartas de Jabra tenha sido quase inteiramente destruída. Uma pilha de discos de Chopin, Vivaldi e Bach bloqueia uma porta, e um velho toca-discos junta poeira. Há uma foto preta e branca de uma classe na Universidade de Bagdá; as alunas trajam minissaias.
Restaram poucas pinturas, uma delas um retrato de Jabra com seu cachimbo na mão. Samarrai e vizinhos disseram que saqueadores roubaram outros artigos de valor da casa, incluindo as joias de Raqiya Ibrahim. "Ninguém mais do bairro se lembra dele", disse Mehdi Mohammed, vizinho que perdeu sua neta no ataque. "Todo o mundo sabe que ele já morreu."


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