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Índice
Anatomia de um engodo
"O interesse do leitor tem sempre prioridade sobre qualquer outro, inclusive o do anunciante", determina o "Manual da Redação" da Folha
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A MEMÓRIA , essa companheira dada a tantas
traições, situa na virada
da década de 1970 para a de 80
o comercial de um shampoo
anticaspa na TV. Um ator dizia
que o produto tinha cheiro de
remédio, cor de remédio, aparência de remédio, mas não
era remédio. O slogan se consagrou: "Parece, mas não é".
A edição de domingo passado da Revista da Folha trouxe duas páginas (4 e 5) que à
primeira vista se afiguravam
como jornalismo. Selecionei
15 exemplos de como elas se
assemelhavam ao espaço editorial da Revista, do design à
estrutura do texto. Elenquei-os no quadro acima.
Como o shampoo, as páginas pareciam, mas não eram...
jornalismo. O anúncio do guaraná Kuat tem o propósito de
se passar por reportagem.
Havia, é verdade, o aviso
"informe publicitário". Mas
era o único alerta para o caráter do que se lia e via, em contraste com a profusão de códigos indicando o contrário.
Na segunda-feira, escrevi na
crítica diária (www.folha.com.br/ombudsman) a nota
"Engodo publicitário".
Começava assim: "A Folha
não deveria aceitar anúncios
produzidos com a intenção de
ludibriar os leitores, mimetizando peça jornalística. O despudor da propaganda [...] se
enquadra na fórmula do engodo. O fato de o anúncio conter
o aviso [...] não desobriga o
jornal de proteger os leitores
da confusão".
Na terça, a diretora de Revistas da Folha, Cleusa Turra,
me enviou a mensagem: "A
publicação do anúncio com
recursos gráficos similares aos
utilizados no corpo editorial
da Revista da Folha está em
desacordo com os padrões
adotados pelo jornal".
"Houve falha no controle
interno ao não impedir que tal
iniciativa chegasse ao leitor. A
concepção gráfica da Revista
busca uma identidade visual
que propicie leitura agradável
mas que, sobretudo, permita
ao leitor diferenciar claramente o material jornalístico
do publicitário [...]."
"Nesse caso específico, a
tarjeta "informe publicitário"
foi considerada insuficiente
para alertar o leitor do conteúdo promocional."
Assim como a Folha cumpre sua função ao investigar
erros de empresas e do Estado, resolvi, na condição de representante dos leitores, apurar a trajetória do anúncio até
o papel. O jornalismo que fiscaliza o poder em nome do interesse público deve estar sob
amplo escrutínio.
Igreja x Estado
A assessoria de imprensa da
Coca-Cola do Brasil -grupo
ao qual pertence o Kuat- e a
agência Giovanni, FCB, dona
da conta publicitária da bebida, negam a intenção de iludir.
"O texto veiculado estava
claramente identificado como
informe publicitário, de forma
que o leitor pudesse concluir
que se tratava de informe publicitário", sustenta a agência.
Se não era para confundir,
por que imitar? Eis o artigo 28
do código do Conselho Nacional de Auto-Regulamentação
Publicitária: "O anúncio deve
ser claramente distinguido como tal, seja qual for a sua forma ou meio de veiculação".
A Giovanni transmitiu o lay-out por e-mail à Folha em 5 de
junho, pedindo aprovação do
jornal. Comparei-o com o que
saiu: só foram suprimidos fios
que copiavam a Revista e aumentou-se a visibilidade do
"informe publicitário".
O anúncio também saiu na
revista de "O Globo", com outro desenho, semelhante ao
desta publicação. A agência
informa que o jornal carioca
recebeu com antecedência o
lay-out, mas impôs muitas
mudanças para aceitá-lo.
De fato, embora em "O Globo" alguns leitores possam tomar a propaganda como reportagem, a diferença de design é maior do que na Folha.
E constam duas, não uma, tarjetas de alerta.
"Nossa avaliação foi de que,
apesar de todos os cuidados
que tomamos, deixando claro
duas vezes no alto que se tratava de um informe publicitário, nós erramos", diz o diretor
de Redação de "O Globo", Rodolfo Fernandes.
"O anúncio estava parecido
demais com uma matéria, o
que contraria nossas regras. É
cláusula pétrea do jornalismo,
faz parte do nosso contrato
com o leitor, que matéria é
matéria e anúncio é anúncio.
O leitor tem o direito de ter essa informação de forma clara,
não deve ter que procurar a diferença entre os dois."
Se a agência errou ao formatar a peça publicitária, tropeço
muito maior foi o da Folha. O
jornal teve tempo, mas não rejeitou o anúncio. É princípio
consolidado que Redação e setor comercial sejam autônomos como Estado e Igreja.
"O interesse do leitor [...]
tem sempre prioridade sobre
qualquer outro, inclusive o do
anunciante", determina o
"Manual da Redação".
Anúncio impróprio
A publicidade não é inimiga
do jornalismo -sem ela, componente fundamental da receita, um jornal pode acabar se
financiando de modo heterodoxo. Trata-se, contudo, de
atividades distintas: a finalidade do jornalismo é informar.
A diretora de Revistas diz
que a Redação só tem acesso
prévio aos "anúncios irregulares, que interferem na diagramação e/ou que citam produtos editoriais". Esses podem
ser recusados. Por que não se
recusou o do guaraná? Cleusa
Turra: "Recebi e-mail comunicando a necessidade de autorização para um anúncio e
não houve tal autorização por
parte da Redação".
A Giovanni relatou ao ombudsman que, no dia 21, a Folha pedira duas modificações
no desenho: tipologia de letras
da vinheta "comportamento"
e no parêntese ao lado.
"Ao tomar conhecimento do
"estilo" do anúncio, solicitei alterações", afirma Cleusa. "Por
falha interna na transmissão
para a gráfica, o anúncio enviado e publicado foi aquele
cujo lay-out não tinha autorização da Redação".
Não creio que tais mudanças resolvessem o problema.
Pena que os controles não
tenham funcionado no domingo. Menos mal que, para a
Folha, não resta dúvida sobre
a impropriedade do anúncio.
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Mário Magalhães é o ombudsman da Folha desde 5 de abril de 2007. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Não pode ser demitido durante o exercício da função e tem estabilidade por seis meses após deixá-la. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verificando suas reclamações, e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Mário Magalhães/ombudsman,
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