São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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OMBUDSMAN

Mão de Deus

BERNARDO AJZENBERG

Desde 21 de agosto até a última sexta-feira, não saiu uma única edição da Folha em que não houvesse ao menos uma reportagem ou alguma referência destacada ao filme "Cidade de Deus", que estreou, justamente, há dois dias.
Isso sem falar no material intermitente, mas regular, publicado pelo jornal desde que a obra foi exibida em sessões reservadas para o presidenciável Luiz Inácio Lula da Silva (6/8) e para o presidente Fernando Henrique Cardoso (10/8).
Não foi uma obsessão que teria tomado conta do caderno cultural (Ilustrada), mas uma febre que se espalhou discretamente, aos poucos, por todo o jornal.
Veja no quadro ao lado como isso se deu, por exemplo, ao longo da semana passada.
Domingo: reportagem em Dinheiro sobre um sistema de microcrédito existente na favela Cidade de Deus, com texto à parte sobre o filme.
Na segunda-feira, o Folhateen trouxe capa sobre violência na periferia tomando a obra como "gancho".
Terça-feira: um anúncio promovia o concurso "Ilustrada leva você para assistir Cidade de Deus". O prêmio: dois ingressos para ver o "aplaudido filme".
Quarta-feira, na seção "Eu Voto em..." do caderno Eleições, o diretor da obra revelava sua preferência eleitoral.
Quinta-feira: o Fovest (suplemento semanal para o vestibular) dá a dica do filme na seção "Em dia".
Finalmente, na sexta, capa e página 3 da Ilustrada, mais uma resenha no Guia da Folha, para a aguardada estréia.

Capilaridade
Nada contra o filme, que ainda não vi e tem recebido elogios.
O que chama a atenção, nesse caso, é como uma produção cultural, apoiada no casamento com um tema atualíssimo (violência/miséria) e num marketing hollywoodiano, consegue adentrar um veículo de comunicação por todos os poros, capilarmente, seguidamente, sem que o próprio veículo, por se fabricar de modo em grande parte atomizado, pareça se dar conta.
Quarta-feira, além da seção em Eleições, também a Ilustrada publicou algo sobre o trabalho, mas criticamente, com um rapper da própria Cidade de Deus acusando-o de ser "preconceituoso". Na sexta-feira, dia da estréia, uma antropóloga, no mesmo caderno, o considerava "equivocado".
Mas nem esse "afastamento" resolve o problema. De certa forma, apenas legitima a operação, dando-lhe um ar de "equilíbrio". E fica difícil explicar para o leitor que não haja aí uma espécie de orquestração entre produção do filme e jornal.
Esse é o fenômeno -e cabe deixar claro que ele não ocorre, nem de longe, apenas na Folha.
E o problema, qual é?
É que essa enxurrada multifacetada de informações sobre um mesmo produto, sem dosagem controlada, expressa a vulnerabilidade do jornal perante um modelo tentacular de divulgação e pressão -sutil e adocicado aqui, agressivo e prepotente ali- adotado com crescente sofisticação pela chamada indústria cultural.
Por melhor ou mais necessária que seja uma obra de arte, faz sentido que um jornal a absorva em suas páginas feito esponja, indiscriminadamente?
Ao fazê-lo, não pode dar a impressão -nefasta para sua credibilidade- de estar instrumentalizado, refém de uma lógica promocional alheia ou de aplaudir o lobby?
Em tempo: se você usa a internet e quer saber "tudo sobre o filme", entre na Folha Online, pois também lá -é isso mesmo- há uma página especial só para ele.

 
No último domingo, você foi informado pela Folha de que a apresentação de Caetano Veloso no parque Ibirapuera (São Paulo), sábado, atraiu, segundo os organizadores, 120 mil pessoas.
Outros jornais falaram em 80 mil pessoas, com base na Guarda Metropolitana. Uma diferença de "apenas" 40 mil cabeças.
Em qual número acreditar?
Em casos como esse, de multidões, é sempre recomendável informar ao leitor, quando houver, os dados de pelo menos duas fontes -algo que não foi feito nem pela Folha nem pelos concorrentes.



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