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São Paulo, domingo, 02 de março de 2003

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OMBUDSMAN

Grampo e privilégio

BERNARDO AJZENBERG




O modo como o caso das escutas telefônicas ilegais na Bahia tem sido tratado pela imprensa gera várias perguntas, e certamente terei de voltar a ele nas próximas semanas.
Nenhuma delas, porém, suscitou mais "clamor", até agora, do que esta: por que a advogada Adriana Barreto, uma das pessoas grampeadas, é tratada pela imprensa como "ex-namorada" e não como "ex-amante" do senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), principal suspeito de arquitetar a espionagem irregular?
O item está longe de ser o mais relevante do caso, em termos políticos. Mas não é à toa que foi a seu respeito o maior número de mensagens ao ombudsman desde que o assunto apareceu.
Elas não se conformam com o que um leitor chamou de "perceptível tratamento diferenciado" dado pela imprensa, Folha inclusive, a um dos "donos do poder".
Perguntei à Secretaria de Redação (SR) o motivo da opção. A explicação:
"A Folha evita informar sobre a vida íntima dos personagens que são objeto de noticiário. Admite exceções quando aspectos da intimidade da pessoa aparecem entrelaçados com fatos de interesse público, como é o caso da escuta telefônica do chamado caso Bahiagate".
"Adotou, inicialmente, a qualificação de ex-amiga para designar a condição de Adriana Barreto em relação ao senador Antonio Carlos Magalhães. A partir do momento em que ela disse publicamente que mantivera relação amorosa com o senador e que este não a contestou, o jornal adotou a qualificação de ex-namorada."
"Preferiu-se esse termo, em vez de ex-amante, porque prevaleceu o entendimento de que esta última expressão, com o passar do tempo, revestiu-se de conotação repreensiva, implicando um juízo de valor sobre a conduta em questão. A Folha considera que a vida íntima das pessoas só diz respeito a elas próprias."
"Tais normas valem para a terminologia empregada no noticiário. Colunistas têm utilizado, a seu critério, qualificações diferentes."
Registre-se, de passagem, que, nas duas últimas sextas-feiras, a colunista Barbara Gancia questionou a escolha com vigor, em textos curiosamente intitulados "Amante mudou de nome?" e "Amante mudou de nome - 2".
Em crítica interna, no dia 21, manifestei minha concordância com ela.

Precisão
Há lógica e prudência, sem dúvida, no raciocínio da SR. Mas ele, creio, não dá conta de dois princípios jornalísticos básicos e caros à própria Folha: precisão e isonomia de tratamento.
Até o fechamento desta coluna, nenhuma reportagem havia registrado o fato de que ACM é um homem casado e de que, portanto, Adriana Barreto não foi exatamente uma namorada.
Faltou no mínimo, como se diz no jargão interno da Redação, "contextualizar" a informação.
É certo que o termo amante soa negativo, pejorativo, moralista até. É certo que o "Aurélio" inclui a palavra namorado como sinônimo possível de amante.
Mas também é certo que, até o momento, não se encontrou, em nossa língua, outra palavra para expressar com igual clareza, simplicidade e exatidão (base do texto jornalístico) o mesmo significado.

Isonomia
Além disso, a sensibilidade do jornal em relação ao delicado substantivo não se mostrou tão aguda em outros momentos recentes (veja o quadro acima). E não há dúvida de que aqui reside o motivo maior de irritação para vários leitores.
A palavra amante foi usada sem eufemismos, por exemplo, no noticiário sobre o assassinato da jornalista Sueli Jacinto, em dezembro, na Praia Grande (SP), do qual teria supostamente participado uma adolescente que seria justamente, de acordo com a reportagem, amante do marido da vítima.
Considerando o argumento da SR, o fato de aquele texto atribuir tal informação à polícia não justificava, por si só, o uso da palavra amante em vez de, por exemplo, namorada.
Uma carta publicada no Painel do Leitor, no dia 4 de janeiro, criticava essa postura do jornal -especialmente, deixe-se claro, por se tratar de uma adolescente.
Apesar disso, o mesmo voltou a ocorrer no final de janeiro, nas reportagens sobre o esquartejamento de uma mulher cometido pelo cirurgião plástico Farah Jorge Farah, em São Paulo.
Título da reportagem, de 28/1:
"Médico é acusado de esquartejar a amante".

"Mais" e "menos"
"Será que para políticos as denominações para casos extraconjugais recebem nomes diversos daqueles utilizados para os simples mortais?", indaga, em e-mail, um leitor.
Pois essa é a questão, que adquire, inclusive, forte teor simbólico.
Pode até parecer, mas não se trata de problema menor, detalhe linguístico ou picuinha semântica.
Ao omitir do público o fato de que ACM é casado, ao sacrificar a exatidão adotando "namorada" em vez de "amante" na cobertura do Bahiagate -em que, claramente, vida privada e vida pública (no caso, do senador baiano) estão imbricadas-, o noticiário da imprensa dá margem à interpretação de que, para ela, existem, sim, cidadãos "mais" e cidadãos "menos".
Poucos deslizes são tão nocivos quanto este, a médio prazo, para a sua credibilidade.


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Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman, ou pelo fax (011) 224-3895.
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