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São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

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Ética e polêmica

Uma rara coincidência fez surgirem em poucos dias no jornal três episódios relacionados a questões de ética jornalística sobre os quais vale a pena refletir.
Ao lado da reportagem sobre o concurso de Miss Brasil ocorrido sábado, a Folha publicou segunda-feira uma crônica da colunista Danuza Leão sobre o evento.
Em crítica interna, questionei o procedimento: "Não encaro o assunto do ponto de vista pessoal, mas me parece inadequado que uma colunista que foi jurada do concurso (...) escreva no jornal a crônica sobre o mesmo evento". Como atenuante, observava que, no texto, a autora informava, com transparência, ter feito parte do júri.
Consultada pelo ombudsman, Danuza esclarece que não foi remunerada para participar, que informou o leitor sobre sua presença no júri e que "votar nas dez mais bonitas não me impediu de ver o que eu teria visto se estivesse na platéia ou pela televisão: que o universo das misses é um mundo à parte, que os conceitos de beleza -medidas etc.- são diferentes dos que a mídia nos impinge há anos (magreza, perna fina etc.), que os cabelos têm de ser iguais etc.".
A Secretaria de Redação avalia que 1) não se tratava de um texto noticioso; 2) não estava em jogo uma questão pública relevante; 3) o fato de a autora ser jurada (o que foi exposto) e personalidade conhecida oferecia um ponto de vista interessante para o leitor; e 5) o jornal ofereceu informação adicional e agregou charme a uma cobertura apenas de entretenimento.
O assunto é controverso e complexo. De minha parte, penso que, independentemente das reais atenuantes, da boa-fé da colunista e das possíveis vantagens editoriais, tal combinação sempre pode levar o leitor a ficar com uma pulga atrás da orelha. E essa mera possibilidade de dúvida não é algo positivo, seja para o jornal seja para o jornalista.
Prefiro a rigidez objetiva do "Manual da Redação", cujo verbete "Ética" (pág. 41) relaciona como "um dos mais altos princípios éticos da profissão" o fato de "não escrever sobre assuntos em que (o jornalista) tenha interesses pessoais diretos".
Cabe registrar, por outro lado, que o tal concurso foi questionado quanto a sua lisura em reportagens de outros jornais ao longo da semana (o "Diário de S.Paulo" chegou a publicar um dia antes dele anúncios classificados cifrados com o nome da vencedora, para poder depois demonstrar a suposta fraude), fato que a Folha preferiu ignorar. Mas isso já é outro assunto.

"Valor"
Na terça-feira, o jornal "Valor Econômico" -diário especializado em economia dos grupos que publicam a Folha e "O Globo"- noticiou a mudança de seu diretor-presidente.
O fato -que circulou em site especializado da internet no dia anterior- foi divulgado também pelo "Estado de S.Paulo" e pela "Gazeta Mercantil".
A Folha e o "Globo" nada publicaram -registrei o equívoco dessa omissão na crítica diária da própria terça-, acabando por fazê-lo apenas no dia seguinte (edição de quarta-feira).
"Num primeiro momento", diz a Secretaria de Redação, "o jornal avaliou como um assunto de menor importância para o conjunto dos leitores. Depois, consideramos que seria interessante fazer o registro no Painel S/A".
Diariamente se publicam dezenas de informações em tese "de menor importância para o conjunto dos leitores", que é heterogêneo. Acho que, aqui, ao menos no primeiro momento, frustrou-se, na verdade, o princípio da transparência, ainda mais que o diretor demissionário -o executivo Flávio Pestana- faz parte do Conselho Editorial da Folha (dado ausente, aliás, da nota do Painel S/A).

Lula e Brizola
Uma ilustrativa reportagem publicada na quarta-feira mostrou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja proposta de reforma previdenciária prevê a cobrança de contribuição dos servidores inativos, endossou em 2001 um abaixo-assinado que condenava idêntica proposta, apresentada então pelo governo de Fernando Henrique Cardoso.
Ao fazer a mesma revelação, porém, o "Globo" acrescentava que o abaixo-assinado tinha sido divulgado no dia anterior pelo presidente do PDT, Leonel Brizola, que faz campanha contra a aprovação do dispositivo.
Tal informação -relevante do ponto de vista da luta política dentro da base aliada do novo governo federal- não constava do texto da Folha.
Na quinta-feira, em análise sobre o caso, um editorial da Folha usou uma fórmula tradicionalmente adotada quando o jornal se refere a um furo dado por ele: "Como revelou esta Folha, Lula assinou um manifesto...". Sendo que, aqui, não era o caso.
Instada a comentar esses pontos, a Secretaria de Redação informa que a fonte do jornal não foi o líder do PDT e que "não sabíamos que o Brizola passaria (o documento) para outros jornais no mesmo dia".
Sobre o editorial, argumenta que ele "diz que a Folha revelou, mas não que só a Folha revelou".
Julgo importante observar, apenas, que já na terça à noite o "Jornal Nacional" mostrou Brizola a exibir o tal abaixo-assinado. Não se justifica, portanto, o fato de a Folha não ter incluído nem mesmo esse elemento na reportagem de quarta.
À frente deve estar sempre a notícia. Paciência, no caso, se aquilo que horas antes se apresentava como um valioso furo deixava, então, de sê-lo.



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