São Paulo, domingo, 04 de maio de 2008

Próximo Texto | Índice

Vida Severina e vida Serafina


O caminho que vai garantir relevância aos jornais diários em sua luta pela sobrevivência não passa por revistas que tratam de celebridades

NO ALTO DA capa da Folha de domingo passado, estavam lado a lado a vida Severina descrita por João Cabral de Melo Neto ("vida a retalho que é cada dia adquirida") e a vida Serafina, que ele não designou assim, mas a que se referiu ao falar das "belas avenidas onde estão os endereços e o bairro da gente fina" em "Morte e Vida Severina", auto de natal pernambucano de 1955.
Lá estavam o carroceiro, que ganha R$ 13,60 para percorrer 50 km de ruas, e a modelo, que recebe R$ 15 mil para desfilar nos 30 metros de passarela. Ela fatura R$ 500 por metro; ele, R$ 0,000272.
É possível argumentar que se tratava de uma boa descrição do Brasil, já apelidado de Belíndia (mistura de Bélgica e Índia), a "terra de contrastes", como diz o chavão.
Provavelmente a vizinhança editorial não ocorreu porque o jornal quisesse chamar a atenção do leitor para o abismo social que separa ricos de pobres nesta sociedade. É mais provável que tenha resultado de uma fórmula engessada, que manda colocar lado a lado os suplementos, no caso as revistas do jornal.
Os mais sensíveis terão se sentido afrontados com o disparate da oposição exibida involuntariamente. Como se duas reportagens, uma sobre o cardápio de um restaurante cinco estrelas e outra sobre o rancho servido num presídio, tivessem sido editadas juntas na página de gastronomia.
A novidade jornalística não era a exibição das diferenças de renda, mas a estréia de Serafina, o novo produto da edição dominical a cada mês da Folha, cuja proposta é "passear" por nomes em evidência no Brasil e no mundo, segundo a diretora do núcleo de revistas do jornal disse a "Meio&Mensagem".
É uma revista que trata de celebridades. Minha opinião é que não passa por aí o caminho que vai garantir relevância aos jornais diários em sua luta pela sobrevivência. No entanto, devo analisar o produto sob a ótica dos leitores e da lógica estratégica que a Folha se propõe a seguir.
Dos leitores que se dirigiram ao ombudsman para comentar a revista, 60% não gostaram. Dos demais, 20% disseram ter gostado, mas reclamaram por ela não circular além da Grande São Paulo, Rio e Brasília. Os outros 20% reclamaram da falta de mulheres e negros entre os personagens focalizados.
No gênero das revistas de celebridades, Serafina me parece um bom produto. Acho esquisito o título, que a exemplo de "Piauí" parece querer chamar a atenção ao explorar a contradição entre um produto sofisticado e um nome associado à pobreza, algo um pouco acintoso e debochado, a meu ver.
Creio que as páginas iniciais se parecem desnecessariamente demais com o modelo "Caras". Nos últimos 25 anos, este jornal tem imposto padrões à imprensa; não é agora que deveria precisar copiar o dos outros. De resto, Serafina pareceu-me acima da média das similares.
A dúvida é se o leitor da Folha aprecia esse gênero. A maior parte dos que se manifestaram chamou a revista de "lixo"", "lamentável", "inútil", "tendenciosa". Alguns a classificaram de "muito linda", "novo design". Acredito que a maioria silenciosa a tenha aprovado sem entusiasmo.
Tudo isso são opiniões, discutíveis, portanto. Irrefutável é que um grupo de assinantes e compradores avulsos está sendo prejudicado ao não receber Serafina com o seu jornal, embora pague por ele o mesmo preço (ou mais).
Qual seria a reação editorial da Folha se produtores de leite passassem a vender para fora dessas regiões embalagens com 900 ml pelo mesmo preço do litro vendido em São Paulo, Rio e Brasília?


Próximo Texto: Privacidade dos olimpianos
Índice


Carlos Eduardo Lins da Silva é o ombudsman da Folha desde 22 de abril de 2008. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Não pode ser demitido durante o exercício da função e tem estabilidade por seis meses após deixá-la. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verificando suas reclamações, e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Carlos Eduardo Lins da Silva/ombudsman, ou pelo fax (011) 3224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br.
Contatos telefônicos: ligue 0800 0159000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.