São Paulo, domingo, 05 de julho de 2009

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CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ombudsman@uol.com.br

Os grandes homens Ronaldo e Michael


O jornalismo impresso deve ser um contraponto de civilidade à obsessão da mídia eletrônica por celebridades

ESTE JORNAL demonstra ser adepto da "teoria do grande homem", formulada em meados do século 19 pelo historiador e filósofo escocês Thomas Carlyle. "A história do mundo não é nada mais do que a biografia de grandes homens", dizia, em sua inabalável admiração por heróis, fossem reis, políticos, militares, poetas ou santos.
Assim, na quarta-feira, ao apresentar a final da Copa do Brasil, a manchete do caderno esportivo foi: "Ronaldo tenta preencher lacuna em seu currículo". Para a Folha, o jogo não era entre Corinthians e Internacional, mas entre Ronaldo e seu currículo.
O mais importante não era o time que foi rebaixado da elite do futebol brasileiro no ano passado estar para ganhar um de seus títulos mais importantes. Era se Ronaldo ia colocar na sua lista de conquistas a de um campeonato disputado no Brasil.
Não se dá muito valor ao papel do técnico, dos dirigentes, dos outros jogadores, da torcida, nem se dá atenção às circunstâncias históricas, econômicas, esportivas que levaram o Corinthians ao sucesso. Foi o "grande homem" que venceu. O resto é resto.
O fascínio com a celebridade se manifestou na cobertura do show da morte de Michael Jackson. A Folha deu mais espaço e destaque a ele do que os jornais americanos. A obsessão pela celebridade, muito bem retratada no filme indicado abaixo, parece estar se tornando marca registrada deste jornal, que em princípio é de referência.
A Folha está antenada com o seu tempo. No magistral livro recomendado ao lado, Richard Sennett descreve como a sociedade ocidental ao longo dos séculos 19 e 20 foi se deixando dominar pelo narcisismo desregrado que privatizou definitivamente a existência social. E Sennett escreveu seu trabalho há 30 anos, antes dos facebooks e blogs.
Metódica e documentadamente, Sennett mostra como a incivilidade tomou conta das relações sociais a ponto de só o que é pessoal, individual, referente aos sentimentos íntimos (especialmente os das estrelas) interessar.
No mundo contemporâneo, a aprovação ou a censura se dirigem aos atores, não às ações. "O que importa não é tanto o que a pessoa fez, mas como ela se sente a respeito."
Em todas as esferas. Na política, por exemplo, "o líder carismático moderno destroi qualquer distanciamento entre os seus próprios sentimentos e impulsos e aqueles de sua plateia e, desse modo, concentrando os seus seguidores nas motivações que são dele, desvia-os da possibilidade de que o meçam pelos seus atos".
A mídia eletrônica, ensina Sennett, insufla esse ânimo coletivo que exige dos famosos um "strip-tease psíquico" público permanente (no caso de Michael Jackson, chega até o túmulo). E o faz porque a sociedade assim deseja.
O jornalismo impresso deveria ser um contraponto de civilidade. É uma pena que esta Folha pareça se recusar a exercê-lo.

PARA LER

"O Declínio do Homem Público", de Richard Sennett (tradução de Lygia Araujo Watanabe), Companhia das Letras, 1989 (esgotado em livrarias, encontrado em sebos e sites de compra e venda)

PARA VER

"O Diabo Veste Prada", de David Frankel, com Meryl Streep, 2006 (a partir de R$ 19,90)


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