São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2001

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OMBUDSMAN

Jogralismo

BERNARDO AJZENBERG

O que bolam Bill Gates e seus assessores quando querem lançar um novo produto da Microsoft, uma atualização do Windows, por exemplo?
Montam uma conferência de porte internacional, reunindo jornalistas do mundo todo, grande parte com passagem paga pela empresa americana.
Gates sobe num palquinho e, com auxílio da mais sofisticada e pirotécnica tecnologia audiovisual, apresenta o seu show.
No mesmo dia, pelas rádios, internet e TVs, ou no dia seguinte, pelos jornais, a população consumidora do planeta fica sabendo da novidade.
Não se trata de publicidade, veja bem. O que Gates fez, nesse exemplo, foi "apenas" uma apresentação.
Pergunto: alguém tem dúvida de que essa primeira repercussão mundial do novo produto custaria não se sabe quantas vezes mais se fosse feita na forma de propaganda? E teria, acrescento, a mesma eficácia?
Mas a pergunta que mais cabe aqui é outra:
Por que toda a imprensa acorre, como que fisgada por um ímã irresistível, a um chamado de Bill Gates, direta ou indiretamente (por intermédio de agências de notícias)?
Há uma lógica dominante nos meios de comunicação, no mundo todo, estupendamente explorada pelos mercados.
É a lógica do espetáculo, a roda de fogo da corrida para ver quem chega primeiro. Na realidade, a corrida louca de todos contra todos para que todos cheguem juntos ao evento e possam, cada um, levar a "indispensável" informação a seus consumidores.
Essa febre contamina todas as áreas do jornalismo, todos os mercados que o entornam e dos quais, no fundo, a própria imprensa participa -inclusive um que, bem mais do que os outros, poderia e deveria estar protegido, digamos, resguardado: a atividade cultural e sua cobertura, objeto, hoje, desta coluna.

Discurso preparado
Na última quarta-feira, todos os jornais importantes do país trouxeram extenso material registrando o lançamento do novo CD de Gal Costa.
Obedientemente, os jornalistas haviam comparecido a um encontro num hotel do Rio, na segunda-feira, submetendo-se ao ritual de ouvir a diva baiana, a qual, meses antes, posara com Antonio Carlos Magalhães para lhe prestar apoio no torvelinho do caso do painel do Senado que o levaria à renúncia.
A leitura das reportagens produzidas a partir desse evento mostra que Gal Costa fora para lá com um discurso decorado, previamente acertado: seu apoio a ACM teve caráter moral, não político.
Foi esse o bordão que os repórteres ouviram, e registraram. Veja alguns títulos:
"Entre o amor e a política" (Folha);
"Amorosa e patrulhada" ("Globo");
"Suave e magoada" ("Jornal do Brasil");
"O amor e a patrulha" ("Correio Braziliense").
Em comportamento que mais se assemelha a um jogral, a imprensa toda destacou o lançamento do CD, adiado por dois meses justamente por causa do apoio outorgado por Gal a ACM.
E reproduziu, devidamente, a neste caso improvável separação entre moral e política elaborada pela cantora.

Espetáculo
Lógico: Gal é um mito, patrimônio nacional, fora de toda e qualquer suspeita...
Tudo isso pode ser verdade, mas há algo que os jornais não conseguiram esconder: o novo disco, dizem as críticas, deixa bastante a desejar.
E aí se volta ao essencial: se desta vez o disco, que é o que interessa, não saiu grande coisa -o que pode acontecer com qualquer artista, por melhor que ele seja- , por que tanta propagação? Por que tanto espaço?
Resposta: por causa do apoio a ACM (afinal, era a primeira vez que a imprensa tinha acesso à cantora desde o seu gesto político).
Outra pergunta: por que não enfatizar nos textos e títulos, acima de tudo, a fragilidade artística que existiria, então, nesse novo trabalho, mantendo, ainda assim, o respeito que Gal Costa merece?
Resposta: porque o "evento", no fundo, se tem a ver com cultura, tem a ver muito mais com o impacto jornalístico do espetacular, da folia uníssona das reincidentes celebrações e consagrações. Tem a ver com a lógica do espalhafato.
Bombardeada meses atrás, na ocasião do Pelourinho, Gal aguardou o momento e articulou a "grande volta".
E não é difícil imaginar qual poderá ter sido ao menos um dos raciocínios dos que trabalham na indústria fonográfica: os ânimos agora esfriaram o bastante para atenuar possíveis ataques emocionais, mas não o suficiente para esgotar a curiosidade midiática de ouvi-la. Dessa forma, propicia-se duplamente o reforço, portanto, da mais ampla divulgação, grátis, para o novo disco.
Seria maquiavélico demais imaginar que a máquina de divulgação possa ter aproveitado o "lado ACM" do lançamento com propósitos diversionistas, antevendo que, caso não o fizesse, uma visão quem sabe crítica da obra em si poderia prevalecer.
Mas que os divulgadores, assessores e marketeiros sabem trabalhar, ah, como sabem. Fazem o seu papel, é bom que se diga. Eles e Gal.
A pergunta é outra: que papel cabe, aqui, ao jornalismo?
Antes de procurar respondê-la, impõe-se registrar que o "Jornal da Tarde", de São Paulo, publicou na mesma quarta-feira uma entrevista excepcional, na qual a cantora se viu obrigada a falar mais, a expor seus pensamentos para além do bordão planejado, até a questionar as indagações do próprio entrevistador.
A Folha bem que tentou fazer algo semelhante, em busca de uma diferenciação, ao escalar o diretor teatral Gerald Thomas para entrevistar a intérprete.
Mas Thomas, como se sabe, não é jornalista e não se "presta ao papel". O que ele fez foi registrar uma conversa entre amigos, na qual o "entrevistador" até mesmo ironiza o próprio jornal, dizendo ter uma "recomendação" para perguntar sobre a questão ACM. Certamente não saiu o que a Ilustrada podia esperar.

Impasse
Voltando à pergunta acima.
"Buscamos ao máximo fazer reportagens exclusivas e manter uma postura crítica na cobertura dos eventos", explica Nelson de Sá, editor do caderno. "Mas, por outro lado, notícia é notícia, não podemos brigar com ela. Assim como não podemos ignorar a indústria cultural."
Para um jornal que se quer consistente no terreno cultural e de entretenimento, a discussão está justamente aí.
Qual é o lugar do "furo" nesse campo? Como definir os limites da instrumentalização dos cadernos culturais pela indústria fonográfica ou cinematográfica, para ficar nos exemplos mais poderosos desse mercado?
O que, nele, é realmente notícia, e não astuciosa e orquestrada plantação, propaganda indireta? Qual é a diferença entre serviço ao leitor e notícia?
O exemplo desse lançamento de Gal Costa mostra, mais uma vez, que há um impasse evidente no chamado jornalismo cultural, gerado pela pressão da mercantilização generalizada das artes e pelas dificuldades que os meios de comunicação que se querem sérios enfrentam para encará-la.
Um círculo vicioso que só será rompido com o rechaço à complacência e ao comodismo, o repúdio à inércia e, sobretudo, muito debate e ousadia.



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