São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2004

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OMBUDSMAN

A imprensa nos trilhos

MARCELO BERABA

O primeiro registro recente que encontrei foi no "Estado de S. Paulo", uma nota publicada no dia 3 de novembro: "Em Minas, governo cortou R$ 2 bilhões e reduziu déficit". O texto informava que até o final do ano o governador de Minas, Aécio Neves, equilibraria as finanças. Segundo o jornal, "o choque de gestão de Aécio já é elogiado em todo o país e virou uma espécie de produto de exportação do governo mineiro".
Depois, veio a "Veja". A edição que circulou a partir do sábado, dia 20, trouxe uma reportagem de quatro páginas que abre com uma foto do governador vazada pelo título "Uma empresa chamada Minas".
O texto é conclusivo: "Em apenas dois anos, o Estado sai do vermelho graças a um processo de saneamento baseado em métodos da iniciativa privada". Em resumo, a reportagem informa que Aécio recebeu do ex-governador Itamar Franco um Estado "praticamente falido", "inadimplente", com um déficit anual de R$ 2,4 bilhões, sem credibilidade para contrair empréstimos internacionais. Dois anos depois, "em tempo recorde", saneou as finanças.
Pela primeira vez aparecem as palavras-chave: déficit zero. Os termos usados para descrever o fenômeno foram, entre outros, "política administrativa austera", "rigor administrativo", "choque de gestão", "técnicos competentes". A reportagem enumera as medidas tomadas pelo governo para alcançar tal êxito e termina com um elogio do diretor do Banco Mundial para o Brasil, Vinod Thomas.
Na segunda-feira, 22, foi a vez da Folha. Na seção "Tendências/ Debates" foi publicado artigo do governador Aécio Neves: "Déficit zero em Minas Gerais". No mesmo dia, Aécio almoçou na Folha, conforme o jornal registrou na sua edição de terça-feira.
No dia 23, terça, o assunto "explodiu" na imprensa, principalmente na mineira. Os três principais jornais de Belo Horizonte trouxeram um anúncio pago pelo governo estadual e pelo Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais na sobrecapa que cobria suas primeiras páginas: "Um dia histórico para todos os mineiros. Minas Gerais anuncia o Déficit Zero".

Campanha publicitária
O feito foi a manchete do "Estado de Minas": "Minas zera déficit público". Os jornais "O Tempo" e "Hoje em Dia" não deram manchete, mas chamadas na primeira página para a informação de que o governador anunciaria naquele dia que alcançara o déficit zero.
Na quarta, dia 24, como os três diários de Minas já tinham usado, na véspera, a expressão déficit zero, saíram com outro enfoque, mas com títulos semelhantes: "Minas vai investir R$ 1,7 bi em 2005" ("Estado de Minas"), "Minas retoma investimentos sociais" ("O Tempo") e "Minas retoma investimento no ano de 2005" ("Hoje em Dia"). E todos trazem no pé de suas capas um novo anúncio do governo: "Déficit zero. Minas nos trilhos".
Fora de Minas, o "Estado" e "O Globo" trouxeram pequenas notas com os dados divulgados pelo governo mineiro. "Valor" trouxe uma reportagem maior. A Folha não publicou a notícia. Ao longo da semana, pelo menos três colunistas repercutiram o acontecimento: na Folha, Luís Nassif (quarta) e Gilberto Dimenstein (domingo); no "Globo", Tereza Cruvinel (quinta).
As manchetes, reportagens, notas e colunas foram editadas junto com uma campanha publicitária do governo de Minas que durou seis dias. Nesse período, segundo o subsecretário de Comunicação Social, Eduardo Guedes, foram publicados anúncios na Folha, "Estado", "Globo", "JB", "Gazeta Mercantil", "Valor", nos jornais de Minas, nas revistas "Veja", "Época", "IstoÉ" e "CartaCapital", além de mensagens em rádios e TVs do Estado.

Leitor crítico
O que impressiona, nesse caso, não é a iniciativa do governo de Minas de lançar uma campanha publicitária para anunciar o equilíbrio das contas e atrair novos investimentos para o Estado. O que impressiona é a abulia e a submissão da imprensa.
As notas e reportagens publicadas reproduzem acriticamente os dados oficiais divulgados pelo governo de Minas. Não há o contraditório, não há o questionamento, não há a dúvida, não há a curiosidade para um aprofundamento do tema. A cobertura jornalística obedece ao tempo e ao enfoque determinados pelo governo de Minas.
Em todo o material que analisei encontrei pouquíssimos registros que escapavam aos releases do Palácio da Liberdade.
Os colunistas da Folha Luís Nassif ("O caso Minas e a economia") e Gilberto Dimenstein ("Minas está transformando dívida em ouro?") fazem o elogio à gestão e situam, apropriadamente, o anúncio do déficit zero no contexto da corrida presidencial. E encontrei a carta de um leitor, Alexandre Magnoni, no Fórum dos Leitores do "Estado de S. Paulo", que reclamava das "péssimas" estradas de Minas.
A Folha não publicou a notícia. O ideal teria sido aproveitar a ocasião e publicar uma reportagem que mostrasse o que está acontecendo de positivo e negativo em Minas, com independência e espírito crítico.
Tomei esse caso de Minas como exemplo porque acaba de acontecer. Mas não é a primeira vez, e infelizmente não será a última, que a imprensa se sujeita docilmente às agendas promocionais dos governos.
Da parte deles, há sempre o argumento de que as campanhas atendem aos interesses públicos. Quanto à imprensa, quase sempre a falta de vontade atende a outros interesses.

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Marcelo Beraba é o ombudsman da Folha desde 5 de abril de 2004. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Não pode ser demitido durante o exercício da função e tem estabilidade por seis meses após deixá-la. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verificando suas reclamações, e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
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