São Paulo, domingo, 06 de dezembro de 2009

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CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ombudsman@uol.com.br

Quem testemunha pela testemunha?


Só quem crê dispor de certeza prévia inabalável pode se achar capaz de distinguir verdade e mentira com base em palavras

O ARTIGO de César Benjamin publicado há dez dias motivou 219 leitores a escreverem ao ombudsman; só 9 o elogiaram.
O que provocou a reação foi principalmente o relato do autor de uma conversa durante almoço em 1994 na qual, segundo ele, o atual presidente da República e então candidato ao cargo contou história supostamente ocorrida em 1980, quando Luiz Inácio Lula da Silva passou 30 dias preso por liderar greves.
Até onde se sabe, não há registro de gravação em áudio ou vídeo desse encontro. Assim, a única possibilidade de tentar comprovar ou não a fidelidade com que Benjamin o descreveu é contrastar o seu depoimento com o de outros participantes.
Como escrevi na semana passada, o certo jornalisticamente teria sido o jornal apresentar o depoimento dos outros personagens na mesma edição em que a análise de Benjamin foi publicada. Isso não aconteceu.
Só no dia seguinte ele começou a oferecer ao leitor outros testemunhos da reunião. Mas, a meu juízo, de modo insuficiente. Duas das pessoas presentes disseram não se lembrar de ter ouvido o que Benjamin contou. Outra, um americano, aparentemente não foi contatado.
Uma delas, o cineasta Silvio Tendler, confirmou o teor do conteúdo, mas contestou o sentido. Sua fala foi registrada em um parágrafo em reportagem no caderno Brasil e em duas notas na coluna "Mônica Bergamo". Como ele é o único que se mostra disposto a comentar com detalhes o assunto, parece-me essencial entrevistá-lo mais extensivamente para dar ao leitor melhores condições de formar um juízo de valor bem embasado.
Outra providência indispensável era ouvir quem esteve com Lula nos dias de prisão aludidos no bate-papo na campanha de 1994 para checar se algo como o relatado havia ou poderia ter ocorrido.
Isso também começou a ser feito no sábado, mas igualmente, em minha opinião, de maneira insatisfatória. Tanto que outros veículos de comunicação registraram depoimentos de ex-companheiros de cela de Lula em 1980 que não apareceram na Folha no dia 28 (embora depois tenham sido oferecidos ao leitor ou em reportagem ou em carta dos próprios). Todos negaram ter havido o incidente.
O principal personagem (além do próprio presidente, que se recusou a comentar o assunto), a alegada vítima da tentativa de "subjugação" por parte de Lula, foi ouvido por outro veículo que circulou no fim de semana, mas a Folha só publicou seu depoimento, mais detalhado e com possíveis leituras diversas, na terça-feira.
Até ontem, o jornal também não havia editado um artigo com espaço e destaque similares aos oferecidos a Benjamin para confrontá-lo. É muito provável que o presidente e seus assessores mais próximos tenham se negado a escrevê-lo.
Mas creio haver pessoas com credibilidade e competência dispostas a fazê-lo. O público seria beneficiado com o contraste de opiniões e acho que em nome da isenção é importante promovê-lo.
A tarefa de reconstituir a verdade a partir de relatos verbais é quase impossível. As obras de ficção recomendadas ao lado ilustram bem essa complexidade e iluminam a compreensão da realidade.
Só quem crê dispor de certezas prévias inabaláveis, como os fanáticos religiosos ou políticos (muitas vezes são a mesma coisa), pode se achar capaz de distinguir verdade e mentira com base só em palavras.
Os que estão abertos à dúvida, como o poeta romeno-alemão Paul Celan, sobrevivente do Holocausto, autor do verso que serve de título para este texto, sabem da possível fragilidade inerente a qualquer testemunho verbal.
Ao jornalismo cabe, nessas situações, oferecer ao leitor a descrição do maior número possível de depoentes credenciados para que ele possa fazer o seu julgamento, levando em consideração que qualquer um pode estar sujeito a imprecisões, erros ou a mentir.
Quando há acusação grave envolvida, o jornal deve ser especialmente cauteloso. Uma boa política editorial aconselha que mesmo em artigos seja feita uma checagem cuidadosa dos fatos relatados, sempre preservando a argumentação defendida pelo autor.
O saldo do episódio não é, para mim, positivo para o jornal até agora.

PARA LER
"Tristano Morre", de Antonio Tabucchi, tradução de Gaetan Martins de Oliveira, Rocco, 2007 (a partir de R 23,12)
"Ficções", de Jorge Luis Borges, tradução de Davi Arrigucci Jr, Companhia das Letras, 2007 (a partir de R$ 27,60)

PARA VER
"Verdades e Mentiras", de Orson Welles, 1974 (a partir de R$ 38,90)
"A Estratégia da Aranha", de Bernardo Bertolucci, 1970


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Carlos Eduardo Lins da Silva é o ombudsman da Folha desde 22 de abril de 2008. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Não pode ser demitido durante o exercício da função e tem estabilidade por seis meses após deixá-la. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verificando suas reclamações, e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
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