São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2001

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O caso Suez-soez

BERNARDO AJZENBERG

Cinco anos atrás, a Folha editou uma brochura intitulada "Antologia do Erramos". Reunia os casos mais curiosos da seção de correções, publicada na nobre página A3 do jornal desde 1991. Além disso, trazia algumas dicas para evitar os equívocos mais comuns.
Essa antologia está disponível no botão "Círculo Folha" do site do jornal (www.folha.com.br).
Na última sexta-feira, o "Erramos" abrigou uma nota que, por si só, deve fazer pensar se já não seria hora de uma segunda edição, revista e ampliada, daquela bem-humorada e corajosa coletânea.
Referindo-se a reportagem de quarta-feira segundo a qual o presidente da República afirmara em Tabatinga (AM) que, se for preciso (em caso de terrorismo ou contrabando, por exemplo), dará ordens às Forças Armadas para abater aviões ameaçadores, o "Erramos" afirma:
"O presidente Fernando Henrique Cardoso classificou o terrorismo de inimigo soez (que significa vil, torpe), e não suez, o que deu origem a uma explicação descabida sobre o uso da palavra na reportagem "Presidente diz que pode permitir abate de avião" (Brasil, pág. A6, 3/10)".
Dois aspectos dão tom especial a essa nota, sendo o primeiro relativo ao mérito.
A reportagem, ao usar "suez" em vez de soez, tentava explicar o inexplicável:
"FHC se referia aos combatentes egípcios que lutaram contra os israelenses na região de Suez, em 1973, e atacavam seus oponentes por meio de túneis subterrâneos abandonados, de surpresa".
A explicação, considerada "descabida" pelo "Erramos" -conquanto expresse um louvável esforço de elucidação-, é tristemente histórica.
O segundo aspecto se refere ao próprio texto da correção.
Note o leitor, relendo-o com bastante atenção, que ele acaba por responsabilizar FHC pela confusão criada.
Literalmente, de modo infeliz, o texto afirma que o que deu origem à explicação "descabida" foi o fato de FHC ter classificado o terrorismo de inimigo soez, e não suez.
Com permissão dos militantes do "politicamente correto", é o samba do crioulo doido.

"Unhas e dentes"
Esses deslizes, claro, não são exclusividade da Folha, que tem, aliás, o hábito de admiti-los publicamente.
O prestigioso jornal britânico "The Guardian", por exemplo, que contém uma seção de "Erramos" desde 1997 (curiosamente, ela é editada pelo seu ombudsman, ou "reader's editor"), também publicou, no ano passado, uma seleção de casos engraçados e pitorescos, chamada "Corrections & Clarifications".
No prefácio redigido para o livro, o editor do jornal, Alan Rusbridger, afirma:
"A maioria dos jornais reluta em admitir que sempre trazem algo errado. Lutarão com unhas e dentes para evitar a confissão de um erro. O raciocínio parece ser bastante simples: se você sempre admite que comete erros, por que motivo deverão os leitores acreditar naquilo que lêem?".
A resposta também é simples. Reside numa aposta na transparência enquanto instrumento de credibilidade.
O caso Suez-soez caberá em qualquer seleta de bobagens às quais o jornalismo brasileiro está sujeito.
Talvez a Folha não considere prioridade, no momento, uma segunda edição daquela antologia. Tudo bem. Mas, diante desse caso, sensato seria ao menos reforçar as dicas que a primeira edição trazia, para poupar os leitores de certas atrocidades.
Porque a paciência e o senso de humor, como se sabe, também têm limites.



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