São Paulo, domingo, 08 de julho de 2001

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OMBUDSMAN

Casamento imperfeito

BERNARDO AJZENBERG

É tão incomum, que vale a pena refletir a respeito. Na semana passada, a Folha publicou três manchetes infelizes, todas relacionadas a pesquisas:
Domingo: "Lula cresce, Ciro cai, Itamar pára"; terça: "Governo admite feriado na 2ª, mas 58% desaprovam"; quarta: "63% da indústria diz que vai demitir".
Na primeira, há duas afirmações questionáveis. Tecnicamente, é falso que Ciro Gomes, o presidenciável do PPS, tenha caído.
Em março (última pesquisa), ele tinha 17%, o que significa, considerando a margem de erro de dois pontos percentuais, um intervalo entre 15% e 19%.
Agora, traz o Datafolha, aparece com 14%, ou seja, entre 12% e 16%. Uma variação, portanto, dentro da margem de erro.
Pode-se até dizer que há uma probabilidade maior de que ele tenha caído, mas não cravar o fenômeno em manchete.
Se usasse coerentemente a redução numérica, o jornal deveria destacar, no título, que também José Serra (PSDB) caiu (de 10% para 7%), o que não fez.
Acrescente-se que o cenário que permitiu a comparação com a pesquisa anterior é hoje o mais improvável (tem Paulo Maluf e Antonio Carlos Magalhães como candidatos) e que, no cenário mais provável, Ciro tem 15%.
Itamar Franco (PMDB), por sua vez, não parou, como quer o título. Simplesmente porque não vinha andando, nem para baixo nem para cima (10% em 99, 10% em março último, 11% agora).
Fenômeno não destacado: pela primeira vez o governador do Rio, Anthony Garotinho (7% em março), empata tecnicamente no segundo lugar (10%).

Troca de dias
Quanto à segunda manchete ("Governo admite feriado na 2ª, mas 58% desaprovam"), há um erro factual e uma contingência da pesquisa que impediu qualquer acerto.
O que o "ministério do apagão" decidiu, conforme noticiado nesse dia (3) no caderno Dinheiro, foi criar um "gatilho" que faça disparar um feriado quando houver queda de água num certo nível nos reservatórios, e este feriado, segundo os estudos, teria maior efetividade numa sexta-feira.
O engano no título da manchete (admitido em "Erramos" na edição do dia seguinte) talvez tenha se originado no fato de que, concomitantemente, o jornal trazia uma pesquisa mostrando que a maioria dos brasileiros é contra a adoção de feriados às segundas-feiras.
A pesquisa, obviamente, foi feita com base em hipótese anterior e não podia ser modificada a tempo. O resultado, então, foi um enxerto desconexo.
Quanto à manchete de quarta, considerei-a em minha crítica interna "catastrofista".
Referindo-se às consequências do racionamento de energia, a pergunta aos empresários (em pesquisa divulgada pela Confederação Nacional da Indústria) era: "Será necessário demitir devido aos ajustes de produção?".
As alternativas de resposta: "não haverá ajuste" (15%); "provavelmente não" (22%); e "provavelmente sim" (63%).
Quer dizer: o "provavelmente sim", dito pelos empresários, foi transformado em decisão já tomada e anunciada ("63% da indústria diz que vai demitir"). Imprudente alarmismo.
(Sobre essa manchete, faço um parêntese gramatical. Alguns leitores questionaram o uso do verbo dizer no singular. Deveria-se escrever, na sua visão, "...dizem que vão...". O jornal, no entanto, está amparado nessa questão. Segundo o Programa de Qualidade, consultado pelo ombudsman, pelo menos três gramáticas sustentam a opção adotada: "Gramática da Língua Portuguesa", de Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante; "Moderna Gramática Portuguesa", de Evanildo Bechara; e o "Dicionário de Questões Vernáculas", de Napoleão Mendes de Almeida.)

Parceria
Ao criar o Datafolha, em 1983, o jornal procurou aliar a investigação jornalística severa, agressiva e imparcial ao rigor técnico e metodológico das pesquisas e estatísticas.
A história dessa parceria está resumida, por exemplo, no quarto capítulo do livro "Marketing político e persuasão eleitoral" (publicado no ano passado pela Fundação Konrad Adenauer), redigido pelo jornalista José Roberto de Toledo e pelo sociólogo Mauro Francisco Paulino, diretor do Datafolha.
De lá para cá, houve enormes avanços nessa relação. Os jornalistas não cometem tantos erros de interpretação de pesquisas quanto antes. E os pesquisadores aprenderam a atender, sem prejuízo do rigor técnico, à precisão e à pressa jornalísticas.
Os exemplos das manchetes equivocadas mencionados aqui, porém, testemunham que, apesar disso -usando uma expressão desses dois autores-, ainda estamos diante de um "casamento imperfeito".



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