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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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OMBUDSMAN

Cem dias

BERNARDO AJZENBERG

A ocupação do Iraque jogou para segundo plano, na mídia, inúmeros assuntos, dentre eles o balanço dos primeiros cem dias da "era Lula".
O tema, apesar disso, não passou em branco, e o tom praticamente unânime, nas reportagens e editoriais, foi de que a nova administração federal surpreendeu na condução da política econômica, superando positivamente expectativas do "mercado" (dentro e fora do país), reduzindo com habilidade a desconfiança de setores empresariais, gerando, ao mesmo tempo, desconforto entre sindicatos, políticos aliados e até mesmo alas do próprio PT.
Outra avaliação comum na mídia: o governo foi regular na articulação política, bem nas relações exteriores (diplomacia) e bastante inoperante no social.
Mas, se houve consenso nas suas primeiras avaliações genéricas, o mesmo não se pode dizer do comportamento da imprensa em relação ao Planalto desde a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em 1º de janeiro.

Aliança tácita
Em meio à ansiedade generalizada para captar quais seriam o novo estilo do Planalto, a nova rotina na Esplanada dos Ministérios e em especial a "agenda petista" -o que levou os jornais a divulgarem inúmeros "balões de ensaio" de possíveis medidas governamentais, numa disputa para ver qual conseguiria antecipá-las com mais acerto-, a Folha se diferenciou com nitidez ao adotar, já nas primeiras semanas, um viés aberta e constantemente crítico.
Algo positivo, coerente com seu posicionamento editorial adotado logo após a vitória do PT ano passado -e facilitado pelos desencontros e desarmonias iniciais do próprio governo.
Essa postura, cabe registrar, teve um componente curioso. No embalo das medidas econômicas ortodoxas e dos discursos oficiais voltados para acalmar inquietações do "mercado", o jornal acabou compondo uma espécie de aliança tácita com os chamados "radicais" do PT.
Sua cobertura, ao destacar as contradições entre a pregação eleitoral, a história petista e as primeiras medidas do partido no comando do país, ganhou cores de "esquerda".
Essa aliança pontual explica, por exemplo, a desproporcional exposição dada pelo jornal a deputados "radicais" e às cobranças feitas por sindicalistas e sem-terras às novas autoridades.
Somem-se a isso os (necessários) questionamentos ao prioritário programa Fome Zero, suas incongruências e oscilações.
Muitos leitores, até alguns que não votaram em Lula, chegaram a questionar ao ombudsman, às vezes com razão, se a Folha não estava "apressada" demais.
No conjunto, penso que, apesar de alguns excessos e cutucões gratuitos, o jornal acertou bem mais do que errou ao não adotar o roteiro da "lua-de-mel".

Fim da exclusividade
Essa diferenciação, no entanto, diminuiu bastante a partir de março -quando cresceram casos como o Bahiagate, os deslocamentos de Fernandinho Beira-Mar, a atuação do crime organizado (assassinatos de juízes), além da guerra no Iraque.
A crítica ao passo lento do Fome Zero, por exemplo, tornou-se generalizada (a exceção reside na TV, em especial na Globo), com outros jornais inclusive tomando da Folha, em alguns momentos, a dianteira nesse ponto.
Para mencionar outros episódios, nada cruciais mas muito simbólicos, não foi ela o primeiro veículo a revelar o fato de o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, ter ganho de presente de um parlamentar um relógio Rolex nem, em outra ocasião, a iniciativa do mesmo ministro de acelerar seu pedido de aposentadoria antes da provável reforma da Previdência.
A Folha igualmente titubeou e deu com menos ênfase do que os concorrentes o questionável uso de um veículo oficial para conduzir a cadela Michele, de Lula, do Alvorada à Granja do Torto, em 19 de março.
Também foi com timidez que o jornal noticiou, no início daquele mês, as desconcertantes declarações dos ministros Antônio Palocci (Fazenda) e Guido Mantega (Planejamento) no Senado admitindo de uma penada, ao lado do senador Aloizio Mercadante (PT-SP), ter o PT se equivocado no passado ao não apoiar no Congresso as reformas propostas por FHC.
Em que pesem as nuanças de contundência, parece claro que a Folha já não detém a exclusividade na cobertura crítica regular do governo -o que é, diga-se, bom sinal para o jornalismo.

Dificuldades
Hoje, os principais desafios da mídia em relação ao novo governo estão em outro patamar, e é aqui, creio, que a diferenciação pode e deve se manifestar:
1) captar as eventuais divergências, as disputas, o nível real de homogeneidade dentro do governo quanto às questões em pauta (autonomia do Banco Central, política de alianças partidárias, aplicação dos programas sociais, por exemplo), de modo a propiciar o debate sobre a sua real viabilidade. Não me refiro às divergências entre ministros e os "radicais" do PT ou a oposição -isso é fácil fazer e já virou folclore-, mas no interior do próprio núcleo do Executivo;
2) esmiuçar com clareza, didatismo, profundidade e pluralismo o conteúdo das complexas reformas tidas até aqui como prioritárias (a tributária e a previdenciária) e as suas prováveis consequências concretas. O que implica o próprio jornal aprofundar seu conhecimento a respeito dos temas sobre os quais elas se estruturam.
Ante um governo que não tem primado pela facilitação de acesso a informações, essas tarefas se complicam para a imprensa.
Um exemplo das dificuldades apareceu sexta-feira, quando alguns jornais divulgaram o conteúdo de um documento de quase cem páginas do Ministério da Fazenda contendo balanço e diretrizes para a economia neste e nos próximos anos.
Na edição nacional, a reportagem da Folha era aberta com a afirmação de que esse material representava "a primeira versão do programa de governo do PT depois da campanha eleitoral".
Não é pouco, ainda mais considerando que as premissas do estudo, segundo o noticiário, são as mesmas da polêmica ortodoxia em vigor, sem, aparentemente, nenhuma sinalização de reais mudanças no futuro.
Tal avaliação implicava uma edição à altura da relevância do texto, que traduzisse em detalhes os seus pontos principais, consequências, contradições etc.
Foi o que fizeram, por exemplo, embora de modos diferentes, o "Estado de S.Paulo" e o "Valor" -mas a Folha não fez.
Pior: na edição mais tardia, voltada para SP e DF, aquela afirmação foi deslocada quase para o final do texto da reportagem e atenuada ("podendo ser considerada uma primeira versão..."), evidenciando-se ainda mais a subestimação, por parte do jornal, do impacto político e econômico desse documento -dentro e fora do governo, dentro e fora do país e, especialmente, em sua base de apoio.
Pode haver mudanças entre uma edição e a outra -não seria a primeira vez. Mas, nesse caso, a Folha falhou em ambas.

Reflexão
Talvez o "Estado" e o "Valor" tenham obtido o documento antes, dispondo, com isso, de mais tempo para refletir e editá-lo.
Ou a falha pode ter sido apenas sintoma da dimensão dos obstáculos que a Folha por vezes encontra, em situações concretas imprevistas, no dia-a-dia, para dirimir internamente dúvidas e discordâncias de avaliação sobre a situação atual e os possíveis rumos do governo.
Nas duas hipóteses, o fato positivo de ter retomado o assunto com mais profundidade na edição de ontem revela atenção do jornal para com o leitor, mas não anula a necessidade de reflexão sobre os motivos do desarranjo do dia anterior.
Pois não foi esse, seguramente, o evento mais feliz dentre os que a Folha deve guardar na memória sobre os primeiros momentos da cobertura da "era Lula".



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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor -recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman, ou pelo fax (011) 224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br.
Contatos telefônicos: ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira.

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