São Paulo, domingo, 14 de abril de 2002

Índice

OMBUDSMAN

Para não esquecer

BERNARDO AJZENBERG

Compare os títulos no quadro à direita. Eles mostram como se comportaram sexta-feira os principais jornais do país em relação aos eventos ocorridos na Venezuela na noite anterior.
Com exceção da Folha, todos trocaram suas manchetes nas edições que se encerravam mais tarde, noticiando a queda do presidente Hugo Chávez.
Nessas trocas, todos, menos a Folha, adotaram títulos mais fortes, em seis colunas, ocupando todo o espaço superior da capa.
Perguntas óbvias: o que aconteceu com a Folha? Por que ela não noticiou, como os demais, a histórica deposição de Chávez?
Algumas explicações imagináveis: 1) o jornal não tinha as mesmas informações dos outros; 2) encerrou suas atividades mais cedo, antes deles; 3) não considerava viável bancar a afirmação, optando por uma saída "cautelosa"; 4) julgou equivocadamente as notícias de que dispunha.
Descarte-se o primeiro item: com a internet e a TV paga, todos os jornais têm acesso, em princípio, às mesmas fontes internacionais.
A leitura dos textos publicados revela que reproduziram basicamente as mesmas declarações de autoridades militares ou políticas venezuelanas.
Descarte-se, também, a segunda hipótese. A Folha não "fechou" mais cedo, por exemplo, do que seu concorrente local, "O Estado de S.Paulo" (em torno da meia-noite e meia). Além disso, como muitos leitores sabem, em casos excepcionais é possível o jornal retardar um pouco a sua impressão para tentar incluir informações.
A deposição de Chávez foi o ponto de chegada de uma sucessão de eventos iniciados com uma paralisação de petroleiros, expandidos numa greve geral (de empresários e trabalhadores) terça e quarta-feira, culminando com uma mobilização de milhares de pessoas em frente ao palácio presidencial, em Caracas, da qual resultaram ao menos 15 mortos e mais de cem feridos.
Você se sentiu informado pela Folha a respeito desse "clima" de crescente radicalismo ao longo da semana? Certamente, não.
A crise recebeu no jornal apenas duas notas em pé de página (uma na quarta, outra na quinta), afora registros nas reportagens sobre o preço do petróleo.
Na prática, com a atenção voltada quase exclusivamente para o gravíssimo conflito israelo-palestino, o jornal deixou de lado, subestimou o que acontecia ao mesmo tempo a bem menos quilômetros daqui. Por isso, foi pego de surpresa. É o que se pôde ver em suas páginas.

Prudência
A Secretaria de Redação pensa diferente, ainda que considere "forçoso reconhecer que o enunciado da manchete de sexta, embora fiel aos fatos, não ficou à altura dos eventos do dia anterior na Venezuela".
Mas isso não decorreu, na sua visão, de uma "subavaliação": o assunto foi manchete do jornal ("em três colunas porque, no dia, metade da primeira página era coberta por anúncio"); recebeu uma página e meia do caderno Mundo; "no final da tarde da quinta-feira já havíamos decidido enviar o correspondente em Washington para Caracas".
Prossegue a argumentação da Secretaria, que tomo a liberdade de resumir: "As informações eram muito confusas e conflitantes... muitos desmentidos... era preciso ser prudente... generais diziam que haviam deposto Chávez; o presidente da Assembléia e o secretário da Presidência negavam... até o fechamento da edição não havia elementos que permitissem afirmar que Chávez havia sido deposto... só se podia fazer alguma troca no jornal até pouco mais das 2h... até as 2h15 da madrugada era impossível para qualquer órgão de imprensa afirmar que Hugo Chávez tinha sido deposto.... o primeiro despacho de agência internacional que afirmava isso de forma categórica chegou às 2h18... todas a informações importantes estavam na primeira página e destacadas, pelo menos, na linha fina.... analisando em retrospectiva, parece claro que teria sido melhor alçar ao título principal a declaração do general que relatou a queda de Chávez (naquele momento, negada pelo governo) e colocar a informação sobre os protestos e as mortes na sobrelinha. Seria a maneira mais direta de transmitir ao leitor o mais provável desfecho da crise".
A Secretaria de Redação menciona ainda ao ombudsman, como "curiosidade", o fato de que o "New York Times" deu um título na mesma linha da Folha.

Cortina de fumaça
O que se questiona não é o tamanho do noticiário da sexta-feira, mas sim o seu conteúdo e o (não) acompanhamento dos eventos ao longo da semana.
Claro que as informações eram confusas, conflitantes. Não tenho dúvidas de que nos próprios jornais concorrentes, que souberam avançar mais do que a Folha, houve receio e hesitação.
Mas, atenção: notícias não vêm prontas e mastigadas, tampouco têm hora para chegar, ainda mais sobre eventos políticos complexos. Por isso, nunca foi simples o ofício do jornalista.
É fácil se escorar na prudência. Mas, se esta é indispensável, não deve servir como cortina de fumaça para encobrir a ausência de aplicação de outras ferramentas básicas do jornalismo: analisar com presteza os diversos dados e o histórico recente de um país, cruzar versões, ponderar as diferentes declarações, não burocraticamente, como se fossem entes matemáticos, mas em razão da situação concreta (naquela noite, por exemplo, diante das particularidades do regime chavista e de tudo o que acontecera ao longo do dia, não parecia lógico que as seguidas declarações de grupos importantes e centrais de militares tivessem peso bem maior do que a de aliados civis isolados de Chávez?); pesquisar com rapidez; ouvir especialistas a "quente".
E aqui não se trata do Afeganistão, mas de um país próximo, sobre o qual a Folha já publicou, em passado recente, várias entrevistas e reportagens.
(Registre-se que, conquanto não tenha extraído daí a devida consequência editorial, o jornal publicou afirmação exclusiva de um jornalista de Caracas que apontava para a derrocada presidencial: "Parece claro que está em desenvolvimento um golpe militar".)
Essas tarefas não são para um indivíduo, nem mesmo apenas para uma seção isolada de um jornal: implicam trabalho de equipe, reciclagem, muita discussão, sensibilidade aguçada, troca permanente de idéias. Eis o coração do problema. Sem o cultivo desses hábitos, qualquer Redação de jornal tende a ficar com os parafusos afrouxados, ou enferrujados.
A propósito disso, tão curioso quanto a coincidência entre a linha da manchete da Folha e a do "New York Times" é o desencontro interno expresso no fato de que um texto colocado pela Folha em seu site na internet à 1h11min da sexta-feira já tratava Chávez como "ex-presidente".
Se se sentia insegura ou se não conseguiu na hora reunir elementos suficientes -por conta, a meu ver, de fragilidades que precisa enfrentar em vez de encobrir- para afirmar que Chávez fora deposto, a Folha tinha a obrigação, no mínimo, de realçar o anúncio de sua queda feito pelos militares, numa manchete de primeira página digna do evento (mesmo com o encarte publicitário destacável a encobri-la, como já ocorreu em outras oportunidades).
Mais do que prudência, houve, creio, um claro erro de avaliação -daqueles para se tirar lições, e não esquecer.



Índice


Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor -recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman, ou pelo fax (011) 224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br.
Contatos telefônicos: ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.