São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2001

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OMBUDSMAN

O dilema

BERNARDO AJZENBERG

Sabia-se desde os atentados terroristas do dia 11 de setembro nos EUA que uma "guerra" se abriria em relação a questões como propaganda, liberdade de imprensa, direito à informação, segurança nacional.
O debate pegou fogo, porém, na semana passada, com o início, domingo, dos bombardeios ao Afeganistão e, em especial, após a divulgação, no mesmo dia, do vídeo com mensagem de Osama bin Laden.
Na terça de manhã, a assessora de segurança nacional de George W. Bush, Condoleeza Rice, pediu para os chefes das principais redes de TV dos EUA "pensarem duas vezes" antes de colocar no ar declarações do terrorista saudita. O pedido se estendeu na quinta aos jornais, com ênfase para evitar reproduzir íntegras dos discursos.
O primeiro grupo respondeu globalmente de modo positivo, aceitando não veicular Bin Laden ao vivo e restringindo as imagens em movimento. Os jornais, menos receptivos, decidirão caso a caso.

Maniqueísmo
A imediata reação de quem preza os direitos civis é condenar qualquer ingerência nos veículos de comunicação, mesmo sendo compreensível, no caso presente, que o governo faça a solicitação que achar necessária em nome do que avalia ser a segurança nacional.
A liberdade de imprensa é inegociável. Cabe aos meios de comunicação decidir, sem censura, o que consideram ou não adequado disponibilizar a seus consumidores. A partir daqui, sim, começam o dilema e a polêmica.
É relativamente fácil criticar aqueles que se propõem a ponderar o pedido oficial e a editar o material coletado levando em conta questões de segurança. Seria capitulação, aplicação passiva de autocensura.
Ao reportar a decisão das TVs norte-americanas em sua edição de quinta-feira, a Folha, a meu ver, incorreu nessa precipitação.
A discussão, porém, é bem mais complexa. E todo maniqueísmo deve ser banido numa situação tão extraordinária como a atual.
A imprensa sempre editou e selecionou. Se os leitores a consomem, não é por ingenuidade, mas sim porque confiam em sua capacidade de fazê-lo bem.
Ainda mais numa sociedade como a americana -na qual a liberdade de imprensa, apesar dos conflitos, é real-, acatar com autonomia e responsabilidade, em nome da segurança nacional, um pedido de restrição não significa automaticamente abdicar dessa liberdade. Tanto mais se há transparência, informando-se ao público da decisão.
É preferível uma pressão de governo aberta, como essa, à cotidiana pressão oculta, feita por meio de telefonemas secretos aos donos da mídia, como ocorre nos países de tradição democrática inconsistente, a começar por este aqui (Brasil), ou onde, em regra, a "segurança nacional" não costuma coincidir com o real interesse nacional.
O julgamento de uma decisão como essa, portanto, só pode se dar a médio e longo prazo, à luz do próprio noticiário que esses veículos produzirem e de seu confronto com os fatos que se forem confirmando.

Hipocrisia
Há muita hipocrisia nesse debate. O "Washington Post" revelou, semana passada, que 17 grupos de imprensa, inclusive aquele ao qual o próprio jornal pertence, sabiam desde a sexta (dia 5) da iminência do ataque ao Afeganistão. Mas nenhuma informação "vazou".
O editor-executivo do jornal admitiu, em reportagem do "New York Times", que, no último mês, bem antes dos pedidos de Rice, foram omitidas dos leitores informações de conhecimento do jornal cuja divulgação poderia atentar contra a segurança nacional.
Alguém imagina que a Folha, ou qualquer outro jornal brasileiro, mandaria diretamente para as rotativas uma declaração de Bin Laden ou da Al Qaeda, sem lê-la antes? Duvido. Ora, por que o mesmo raciocínio não valeria para as suas eventuais entradas ao vivo na televisão?
Registre-se, a propósito, que a Rede Cultura, por exemplo, fez um acordo formal com a TV Al-Jazeera, anunciado na quinta.
Em conversa com o ombudsman, seu diretor de jornalismo, Marco Antônio Coelho Filho, afirmou na sexta que a intenção, no que diz respeito a declarações de Bin Laden, é analisá-las antes, não transmiti-las ao vivo.
"Estamos no fio da navalha", diz Coelho Filho. "Queremos dar o outro lado, mas não se deve desconsiderar o interesse público, marca do nosso jornalismo."
Informação curiosa: segundo o jornalista, ao contrário do que se propagou, não há contrato de exclusividade entre a norte-americana CNN e a rede de TV do Qatar, sensação do momento.
No caso do Brasil, acrescente-se, o complicador é ainda maior. As informações, na sua quase totalidade, provêm de agências internacionais, americanas ou européias. Poucos são, infelizmente, os correspondentes internacionais.
Só isso já implica uma filtragem considerável, um grande risco de sofrer manipulação e de se sujeitar, involuntariamente, à propaganda de guerra.
Um dos contrapesos a esse drama jornalístico está em alimentar ao máximo a polêmica, a reticência, as análises, sem prejulgamento.
Se conseguir fazê-lo, transmitindo ao mesmo tempo as informações de guerra relevantes de que dispuser, a imprensa fora dos EUA estará cumprindo seu papel.



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